Será o fantástico que faz a literatura fantástica?

Mas será o “Fantástico” que torna a literatura fantástica?

...e vou transformar esta esfregona e o balde numa carreira profissional brilhante e numa conta bancária, assim só te casas se realmente quiseres...

A FADA-MADRINHA FEMINISTA: “…e vou transformar esta esfregona e o balde numa carreira profissional brilhante e numa conta bancária, assim só te casas se realmente quiseres…”

Não creio, a avaliar pela proliferação de títulos “fantásticos”, esotéricos, de horror ou de mistério, e que numa rápida leitura de estante de livraria revelam debilidades evidentes na escrita, na caracterização de personagens e situações, além de reproduzirem estereótipos, provavelmente porque destinados a um público que exige precisamente mais do mesmo. E do que tenho oportunidade de ler com algum detalhe, o tédio e a previsibilidade são nota dominante.

A literatura fantástica clássica ou popular, desde a ‘Epopeia de Gilgamesh’ ou os diferentes livros da Bíblia  aos contos de fadas, fábulas, e tantos outras obras mais recentes, talvez sejam particularmente perturbantes precisamente por associarem o fabuloso à imediata realidade humana, numa combinação mais enigmática do que misteriosa, pois a interpretação duma das partes funciona como uma espécie de adivinha em que a resposta está na outra dimensão, humana ou fantástica.

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A fantasia evidente do País das Maravilhas pode divertir, mas perturba logo imediatamente o leitor quando os jogos de palavras revelam-se absurdos, sim, porém difíceis de arrumar dizendo não terem, simplesmente, sentido. Como, logo de início, com a pergunta da pequena Alice para si mesma, ao tentar se interessar pelo livro que a irmã mais velha lia: ‘e qual é o interesse dum livro sem imagens nem diálogos?‘ Ou quando o Cavaleiro Branco lhe diz que vai cantar uma canção muito, muito bela: ‘Toda a gente que me ouve cantá-la, ou fica com os olhos molhados de lágrimas ou então…-Ou então o quê? pergunta Alice, pois o Cavaleiro faz uma pausa brusca   -Ou então não, entendes?‘ Ora, as palavras e a linguagem são as mesmas do discurso corrente, normal: o absurdo está à distância dum lapso da língua e a verdade estabelecida pode ser desmontada pela impertinência duma língua sem travão.

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Esses absurdos são mais notórios nas voltas e reviravoltas de que os contos de fadas são pródigos, e muitos dos que os coligiram tiveram de os reescrever com o propósito explícito de retirar os excessos, nomeadamente as ‘impurezas‘ decorrentes de os ouvir ‘da boca das pessoas comuns‘. Concretamente o excesso de detalhe quando o assunto é escandaloso, “distorcendo” assim as boas intenções do conto, como se refere Marina Warner em From the beast to the blond: on fairy tales and their tellers (ed.Vintage 1995): ‘É quando os contos de fadas coincidem com a realidade que começam a sofrer a censura, não o contrário. Eles não são alterados -ou até deixados cair no esquecimento- pelos editores e organizadores das colectâneas para remover-lhes as inverosimilhanças e as noções absurdas‘.

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Ou seja, a categoria do fantástico, do maravilhoso, é tanto mais perturbante quanto se relaciona com o mundo normal, e de modo tanto maior quando evita as associações e referências explícitas, as conclusões finais, a ‘moral da estória’. Deste modo abordam temas terríveis , mas que fazem parte da natureza humana, e de outro modo indizíveis.