Os favores do público e os da bela Musa
Que os hábitos de leitura estejam a mudar, não é novidade. Na verdade, estão sempre a mudar desde os últimos quatro mil e tal anos, pelo menos. A novidade talvez seja a velocidade com que mudam… e que importância tem isso para o trabalho do escrevinhador?
Nenhum dos meus companheiros do jornal acreditou que eu regressaria; não acreditou sequer o director, que se despediu de mim com grande ternura e pediu que lhe escrevesse. Fingi emocionar-me também, mas a verdade é que estava desejando tomar o comboio daquela noite, chegando a Madrid na manhã do dia seguinte, onde veria a Rosinha, que me estaria esperando. Mas esse é outro cantar. (1)
Depende das opções de vida que este pretenda assumir: ser um escrevinhador com sucesso e obra lida, ter uma ocupação profissional na escrita, escrevinhar por prazer, paixão ou obsessão, ou escrevinhar para ‘vomitar’, para descarregar a tensão. Tudo isto à vez, por partes, enfim…
Considerava, talvez nos seus momentos de menor lucidez, que é possível alcançar a felicidade na terra quando não faz muito calor, e essa ideia causava-lhe alguma confusão. Gostava de extraviar-se por ásperos caminhos metafísicos. (…) No entanto, ele mesmo não se deu conta de se ter tornado tão subtil em seus pensamentos, que fazia pelo menos três anos que em seus momentos de meditação já não pensava em nada. (2)
Seja como for, este blog não tem pretensões de dar dicas para uma escrita de sucesso, nem mesmo para o mero exercício profissional, e certamente não visa propósitos terapêuticos.
É-se poeta pelo que se afirma ou pelo que se nega, nunca, naturalmente, pelo que se duvida. Isto dizia—não recordo onde—um sábio, ou, para melhor dizer, um savant, que sabia de poetas tanto como nós de capar rãs. (3)
Se existe uma agenda oculta ao longo da série de posts aqui publicados, suspeito ser a de incentivar a escrita por prazer e paixão, sim… sem abdicar da exigência crítica, autocrítica, decorrente das opções temáticas, estilísticas e outras. Exigência que não obedece propriamente a um programa, mas à reflexão racional e estética.
Ponho estes seis versos na minha garrafa ao mar/ com o secreto desígnio de que algum dia/ chegue a uma praia deserta/ e um menino a encontre e a destape/ e em lugar de versos extraia pedrinhas/ e socorros e alertas e caracóis. (4)
Ora, a reflexão racional é aquilo que nos permite falar do trabalho literário, o próprio e o dos outros, de modo construtivo, trocando argumentos, justificando-os e, eventualmente, corrigindo-os ou mudando. Podendo ser estimulante, seminal (para usar uma palavra cara ao gosto de alguns), não é fundamental para o acto criativo da escrita .
Como saber se no momento actual o alfabeto continuava crescendo ou se encontrava já numa etapa de implosão, de regresso às origens? Talvez que nos seus momentos de maior crescimento, seus domínios tenham chegado mais além do W e do Z, formando palavras cujos sons não se podiam imaginar na situação presente. (5)
Se a reflexão estética beneficia muito da reflexão racional, pelo menos no sentido de não cair num discurso palavroso, descritivo, sentimental, programático ou delirante, em troca vai reforçá-la, se souber exprimir (ou contaminá-la com) o grãozinho de loucura característico da criatividade artística.
Melhor o barco pirata/ que a barca/ dos loucos./ Mais atroz do que isso/ a lua nos meus olhos./ Sei mais do que um homem / Sei mais do que um homem/ menos do que uma mulher (6)
É nesse sentido que, por aqui, muito se lamenta a falta do trabalho crítico na apreciação dos trabalhos literários, tanto mais ausente quanto a comunidade de escrevinhadores vai perdendo referências comuns de excelência.
(…) a historia da literatura, como diz o mestre Riquer, não consiste num catálogo de virtuosos, senão numa indagação que pretende chegar à alma do escritor. Estes podem ser ao mesmo tempo uns grandes artistas e uns grandes depravados. (7)
Sei, por experiência própria, que custa escrevinhar sem ter a expectativa de ser publicado (e lido). Simplesmente, não acredito que escrever na expectativa de agradar aos gostos dominantes da época, traga os favores da bela Musa. E gozar desses favores é o propósito explícito deste blog.
Mas eu sofri-te. Rasguei minhas veias,/ tigre e pomba, sobre tua cintura/ em duelo de mordiscos e açucenas. / Enche, pois, de palavras minha loucura/ ou deixa-me viver na minha serena/ noite de alma para sempre escura. (8)
Mas não haverá meio termo?—perguntará o leitor sensato, apoiando os polegares nos suspensórios da moderação. Claro que há, pacato leitor, claro que há.
A coisa havia chegado ao seu fim e a reunião começou a dissolver-se pouco a pouco. Alguns vizinhos tinham coisas que fazer; outros, menos, pensavam que quem teria coisas a fazer era, provavelmente, o sr. Ibrahim, e outros, que há sempre de tudo , saíram por já estarem cansados de levar uma longa hora de pé. O sr. Gurmesindo Lopes, empregado da Campsa e vizinho da sobreloja C, que era o único presente que não havia falado, ia-se perguntando, à medida que descia, pensativamente, as escadas:—E foi para isto que pedi eu dispensa no escritório? (9)
A questão, a meu ver, é outra: a de arrasar (para continuar a utilizar terminologia erudita) elevando as expectativas do leitor, exigindo dele tempo e determinação para prosseguir a leitura, não o enganando na sua ignorância, mas desafiando-o a reconhecer nele mesmo os mistérios profundos do que é exposto, seja a medíocre realidade do quotidiano, seja a fantasia épica.
(…) imaginei este enredo, que escreverei talvez e que já de algum modo me justifica, nas tardes inúteis. Faltam pormenores, rectificações, ajustes; há zonas da história que não me foram reveladas ainda; hoje, 3 de Janeiro de 1944, vislumbro-a assim. (10)
Conseguindo isto, o tal grãozinho da loucura intoxica fatalmente o leitor, transformando-o. E isso é paixão. Ou seja, eflúvios da bela Musa.
(1) in Los años indecisos de Gonzalo Torrente Ballester, ed.Planeta
(2) in Un dia despues del Sabado de Gabriel Garcia Marquez, incluído em Los funerales de la Mamá Grande ed.Bruguera
(3) in Juan de Mairena de António Machado ed.Alianza Editorial
(4) in Botella ao mar de Mario Benedetti incluído na Antología poética ed.Alianza Editorial
(5) in El orden alfabético de Juan José Millás ed. Suma de letras
(6) in Haikús I de Leopoldo María Panero incluído em El último hombre, Poesia Completa (1970-2000) ed.Visor Libros
(7) in La voz melodiosa de Montserrat Roig ed.Destino
(8) in El poeta pide a su amor que le escriba de Frederico Garcia Lorca em Sonetos Poesía Completa ed.Galaxia Gutenberg
(9) in La Colmena de Camilo José Cela ed.Castalia
(10) in Tema del traidor e del héroe de Jorge Luís Borges incluído na Nueva antología personal ed.Bruguera