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Etiqueta: autocrítica

Os favores do público e os da bela Musa

Que os hábitos de leitura estejam a mudar, não é novidade. Na verdade, estão sempre a mudar desde os últimos quatro mil e tal anos, pelo menos. A novidade talvez seja a velocidade com que mudam… e que importância tem isso para o trabalho do escrevinhador?

Nenhum dos meus companheiros do jornal acreditou que eu regressaria; não acreditou sequer o director, que se despediu de mim com grande ternura e pediu que lhe escrevesse. Fingi emocionar-me também, mas a verdade é que estava desejando tomar o comboio daquela noite, chegando a Madrid na manhã do dia seguinte, onde veria a Rosinha, que me estaria esperando. Mas esse é outro cantar. (1)

Nos países mais avançados as crianças nasciam com aplicativos para telemóveis.

Nos países mais avançados as crianças nasciam com uma aplicação para telemóveis…

Depende das opções de vida que este pretenda assumir: ser um escrevinhador com sucesso e obra lida, ter uma ocupação profissional na escrita, escrevinhar por prazer, paixão ou obsessão, ou escrevinhar para ‘vomitar’, para descarregar a tensão. Tudo isto à vez, por partes, enfim…

Considerava, talvez nos seus momentos de menor lucidez, que é possível alcançar a felicidade na terra quando não faz muito calor, e essa ideia causava-lhe alguma confusão. Gostava de extraviar-se por ásperos caminhos metafísicos. (…) No entanto, ele mesmo não se deu conta de se ter tornado tão subtil em seus pensamentos, que fazia pelo menos três anos que em seus momentos de meditação já não pensava em nada. (2)

Não estou aqui para ser DELICADO!

Não estou aqui para ser DELICADO!

Seja como for, este blog não tem pretensões de dar dicas para uma escrita de sucesso, nem mesmo para o mero exercício profissional, e certamente não visa propósitos terapêuticos.

É-se poeta pelo que se afirma ou pelo que se nega, nunca, naturalmente, pelo que se duvida. Isto dizia—não recordo onde—um sábio, ou, para melhor dizer, um savant, que sabia de poetas tanto como nós de capar rãs. (3)

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Se existe uma agenda oculta ao longo da série de posts aqui publicados, suspeito ser a de incentivar a escrita por prazer e paixão, sim… sem abdicar da exigência crítica, autocrítica, decorrente das opções temáticas, estilísticas e outras. Exigência que não obedece propriamente a um programa, mas à reflexão racional e estética.

Ponho estes seis versos na minha garrafa ao mar/ com o secreto desígnio de que algum dia/ chegue a uma praia deserta/ e um menino a encontre e a destape/ e em lugar de versos extraia pedrinhas/ e socorros e alertas e caracóis. (4)

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Ora, a reflexão racional é aquilo que nos permite falar do trabalho literário, o próprio e o dos outros, de modo construtivo, trocando argumentos, justificando-os e, eventualmente, corrigindo-os ou mudando. Podendo ser estimulante, seminal (para usar uma palavra cara ao gosto de alguns), não é fundamental para o acto criativo da escrita .

Como saber se no momento actual o alfabeto continuava crescendo ou se encontrava já numa etapa de implosão, de regresso às origens? Talvez que nos seus momentos de maior crescimento, seus domínios tenham chegado mais além do  e do Z, formando palavras cujos sons não se podiam imaginar na situação presente. (5)

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Se a reflexão estética beneficia muito da reflexão racional, pelo menos no sentido de não cair num discurso palavroso, descritivo, sentimental, programático ou delirante, em troca vai reforçá-la, se souber exprimir (ou contaminá-la com) o grãozinho de loucura característico da criatividade artística.

Melhor o barco pirata/ que a barca/ dos loucos./ Mais atroz do que isso/ a lua nos meus olhos./ Sei mais do que um homem  / Sei mais do que um homem/ menos do que uma mulher (6)

Credo, Helena... não podes ir para a praia dessa maneira! É obsceno!

Credo, Helena… não podes ir para a praia dessa maneira! É OBSCENO!

É nesse sentido que, por aqui, muito se lamenta a falta do trabalho crítico na apreciação dos trabalhos literários, tanto mais ausente quanto a comunidade de escrevinhadores vai perdendo referências comuns de excelência.

(…) a historia da literatura, como diz o mestre Riquer, não consiste num catálogo de virtuosos, senão numa indagação que pretende chegar à alma do escritor. Estes podem ser ao mesmo tempo uns grandes artistas e uns grandes depravados. (7)

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Sei, por experiência própria, que custa escrevinhar sem ter a expectativa de ser publicado (e lido). Simplesmente, não acredito que escrever na expectativa de agradar aos gostos dominantes da época, traga os favores da bela Musa. E gozar desses favores é o propósito explícito deste blog.

Mas eu sofri-te. Rasguei minhas veias,/ tigre e pomba, sobre tua cintura/ em duelo de mordiscos e açucenas.  /  Enche, pois, de palavras minha loucura/ ou deixa-me viver na minha serena/ noite de alma para sempre escura. (8)

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Mas não haverá meio termo?—perguntará o leitor sensato, apoiando os polegares nos suspensórios da moderação. Claro que há, pacato leitor, claro que há.

A coisa havia chegado ao seu fim e a reunião começou a dissolver-se pouco a pouco. Alguns vizinhos tinham coisas que fazer; outros, menos, pensavam que quem teria coisas a fazer era, provavelmente, o sr. Ibrahim, e outros, que há sempre de tudo , saíram por já estarem cansados de levar uma longa hora de pé. O sr. Gurmesindo Lopes, empregado da Campsa e vizinho da sobreloja C, que era o único presente que não havia falado, ia-se perguntando, à medida que descia, pensativamente, as escadas:—E foi para isto que pedi eu dispensa no escritório? (9)

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A questão, a meu ver, é outra: a de arrasar (para continuar a utilizar terminologia erudita) elevando as expectativas do leitor, exigindo dele tempo e determinação para prosseguir a leitura, não o enganando na sua ignorância, mas desafiando-o a reconhecer nele mesmo os mistérios profundos do que é exposto, seja a medíocre realidade do quotidiano, seja a fantasia épica.

(…) imaginei este enredo, que escreverei talvez e que já de algum modo me justifica, nas tardes inúteis. Faltam pormenores, rectificações, ajustes; há zonas da história que não me foram reveladas ainda; hoje, 3 de Janeiro de 1944, vislumbro-a assim. (10)

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Conseguindo isto, o tal grãozinho da loucura intoxica fatalmente o leitor, transformando-o. E isso é paixão. Ou seja, eflúvios da bela Musa.

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“Eu SABIA que querias, querido… TINHAS de querer!! Sentindo o que sinto por ti… mesmo que seja errado… tinhas de gostar de mim… mesmo que um bocadinho!…”  título do livro: ‘Princípios fundamentais da Matemática’

(1) in Los años indecisos de Gonzalo Torrente Ballester, ed.Planeta

(2) in Un dia despues del Sabado de Gabriel Garcia Marquez, incluído em Los funerales de la Mamá Grande ed.Bruguera

(3) in Juan de Mairena de António Machado ed.Alianza Editorial

(4) in Botella ao mar de Mario Benedetti incluído na Antología poética ed.Alianza Editorial

(5) in El orden alfabético de Juan José Millás ed. Suma de letras

(6) in Haikús I de Leopoldo María Panero incluído em El último hombre, Poesia Completa (1970-2000) ed.Visor Libros

(7) in La voz melodiosa de Montserrat Roig ed.Destino

(8) in El poeta pide a su amor que le escriba de Frederico Garcia Lorca em Sonetos  Poesía Completa ed.Galaxia Gutenberg

(9) in La Colmena de Camilo José Cela ed.Castalia

(10) in Tema del traidor e del héroe de Jorge Luís Borges incluído na Nueva antología personal ed.Bruguera

Ir além

A autocrítica é entendida como esforço de aperfeiçoamento, um ‘ir além’ que o tempo-que-passa e a exposição dos textos tendem a estimular, sinal de maturidade e de vigor criativo. A qualidade da escrita ressente-se da falta de sentido crítico e autocrítico do escrevinhador (que também é, não o consigo imaginar de outro modo, um leitor).

‘Pai, Mãe,’ disse a sua irmã, batendo sobre a mesa com a mão como introdução, ‘não podemos continuar assim. Talvez não consigam perceber, mas eu consigo. Não quero chamar este monstro de meu irmão, tudo o que digo é isto: temos de tentar e livrar-nos disto. Tentamos tudo o que é humanamente possível para cuidar daquilo e ser paciente, penso que ninguém nos pode acusar de fazer algo errado.’ (1)

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Aplicações disponíveis no Facebook (esquerda)
Aplicações úteis no Facebook (direita)

Para o principiante o exercício autocrítico é mais penoso, menos óbvio, provavelmente mais urgente. Assim, a bagagem literária, a curiosidade pelo processo como outros escrevinhadores desenvolvem os mesmos temas, a sensibilidade ao modo como as pessoas comunicam, reflectem, actuam, lêem, são algumas ferramentas de trabalho que permitem avaliar a própria escrita.

Entretanto, Xerazad dizia à sua irmã Dunyazad: “Mandarei-te chamar quando estiver no palácio, e assim que chegues e vejas que o rei tenha terminado o seu assunto comigo, me dirás: ‘Irmã, conta alguma estória maravilhosa que nos faça passar a noite’. Então contarei contos que, se Deus quiser, serão a causa da libertação das filhas dos muçulmanos’ (2)

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Na prosa e na poesia, o escrevinhador constrói os textos de modo faseado, tanto na forma como no tempo, mesmo que sinta ter escrito tudo de rajada. Em alguma dessas fases o escrevinhador deve assumir qual é a sua pretensão formal, ou seja, como pretende exprimir algo de modo ‘original’. Essa pretensão tem menos a ver com o tema do que com a perspectiva, o tom, o ritmo, o nível de linguagem, entre outros aspectos que lhe pareçam significativos no material escrito.

Nietzsche é, na esteira dos pré-socráticos que tão caros lhe foram, o filósofo em cujos escritos se fundem a especulação abstracta, a poesia e a música. (3)

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Querido YOUTUBE, eu vou sempre ‘saltar a publicidade’

O mais estereotipado desfecho pode ser escrito pela enésima vez e surpreender…—como assim?! O assassino é o mordomo? Aparece o príncipe encantado —ou a cavalaria— mesmo antes do final da estória? Não sei, ninguém sabe, nem mesmo o escrevinhador quando cria. Mas, lendo e relendo com menos emoção e mais sentido crítico, talvez uns concluam que a surpresa está na diferença como se aborda o tema, no modo distinto como o desenvolve, pelas perplexidades que sugere ou expõe e que transcendem o género.

(…) é que os contos, uns têm graça por si mesmos, outros pelo modo de contá-los (quero dizer que alguns há que, ainda que se contem sem preâmbulos e ornamentos de palavras, satisfazem); outros há que é necessário vesti-los de palavras, e com demonstrações de rostro e de mãos, e com mudar a voz, resultando algo de muito pouco, e de frouxos e descoloridos se tornam penetrantes e saborosos (4)

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A estafada polémica da ‘originalidade’ é sempre produtiva quando posta em contexto, um problema tanto maior quando começa a ser difícil encontrar denominadores comuns entre leitores (complexa noção matemática aqui empregue no sentido de leituras comuns).

O verso branco para o elisabetano era novidade tão excitante quanto o ‘close-up’ num filme de Griffith, e ambos são muito semelhantes pela intensidade de ampliação e pelo não-exagero de sentimento que permitem. Mesmo Whitman, arrebatado pela nova intensidade visual do jornal do seu tempo, nada encontrou de maior capacidade de repercussão para o seu grito bárbaro do que os versos brancos. (5)

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-Sabes me dizer como chegar, como chegar à rua Sésamo? -Não, não sei. É um lugar de fantasia. Ninguém pode ir lá.

Sem esses comuns denominadores, fica complicado para o escrevinhador entender ou fazer entender toda uma tradição que povoa a literatura de mitos, dramas palacianos ou abismos da alma. Se ele não entende e reproduz, acrítica e inconscientemente, velhas estórias e bem conhecidas intrigas, cai no ridículo, no estereótipo e pode, inclusivamente, ser um sucesso de vendas. Se as entende e recria, corre o risco de ser um criador original sem ser entendido, permanecendo na obscuridade.

O originário, no homem, (…) indica sem cessar e numa proliferação sempre renovada que as coisas começaram muito antes que ele  (6)

Excepto este sacrifício, o resto é simbólico.

“Excepto este sacrifício, o resto é bastante simbólico.

Nada é garantido, na verdade, mas há elevada probabilidade de se ficar na medíocre obscuridade. O que, na verdade, tanto deriva dum mero cálculo estatístico como da natureza criativa.

Escrevo estas linhas.Parece impossível/ Que mesmo ao ter talento eu mal o sinta!/(…)/ Se ao menos eu por fora fosse tão/ Interessante como sou por dentro! (7)

Ilustración para El castillo, de Luis Scafati

imagem de Luis Scafati

(1) in Metamorfose de Franz Kafka, da trad.inglesa de David Wylli Project Gutenberg eBook
(2) in El libro de las mil noches y una noche, da trad. Joseph Charles Mardrus/Vicente Blasco Ibáñez Project Gutenberg eBook
(3) in A Poesia do Pensamento de George Steiner, trad.Miguel Serras Pereira ed.Relógio D'Água
(4) in Cipión y Berganza o El coloquio de los perros de Miguel de Cervantes
(5) in A galáxia de Gutenberg de Marshall McLuhan trad.Leónidas G.Carvalho/Anísio Teixeira ed.Companhia Editora Nacional
(6) in Las Palabras y las cosas  de Michel Foucault, da trad.Elsa C.Frost ed.Planeta
Agostini
(7) in Opiário de Álvaro de Campos

O escrevinhador à toa

O ‘chato’ como categoria estética é, no mínimo, tão complexa quanto polémica como o é a categoria do ‘belo’, e não menos condicionada por factores sociais ou pela passagem do Tempo.

-Bem, chega de falar de mim

-Bem, chega de falar de MIM! Vamos escolher o jantar?                                                                                          ‘A BANALIDADE DO MAL’

Pessoalmente, uso e abuso dela por entendê-la pertinente e por corresponder a algo de que todos temos percepção. Porém, faço-o com consciência de ser uma expressão sem rigor, subjectiva, variável.

Por isso se diz que a tarefa do escrevinhador é solitária, pois como há-de ele se guiar durante o processo de criação? Mesmo tendo leitores habituais, corre-se sempre riscos inovando ou se repetindo.

-Obrigado a todos pelo bolo e por me forçarem a confrontar com a minha mortalidade.

-Obrigado a todos pelo bolo e por me forçarem a confrontar com a minha mortalidade.

Mas o mesmo livro pode surpreender, quando relido anos depois: o leitor não fica livre de ser o ‘chato’, quando revela sua inaptidão para entrar no jogo das ironias ou para interpretar sentidos menos óbvios, por exemplo; ou quando se deixa levar por fenómenos de moda, lendo sem critério e adoptando critérios estereotipados.

Aqui, o papel do editor/agente poderá ser de grande valia para o escrevinhador, assim como o do crítico para o leitor. Porém, no mundo da Língua Portuguesa, onde existem esses editores/agentes e esses críticos?

Assim, o escrevinhador vagueia sem estrelas a guiá-lo, muitas vezes jogando textos nas páginas das redes sociais ou declamando versos em tertúlias. Sempre na esperança de ser reconhecido e valorizado, talvez demasiado crente naquilo que não é mais do que a boa vontade de estranhos e amigos. Ora, o que geralmente acontece é que nem é lido, nem apreciado, muito menos criticado. Sem polémicas, não há consciência clara do processo criativo. Sem leitores exigentes, não há estímulo para o aperfeiçoamento.

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Muito pior ainda se, inseguro de si mesmo, o escrevinhador evita reflectir sobre o que faz e como o faz.

Sem se questionar: escrever… como?

 

 

Abertura e fluidez

Seja como forem a abertura, as primeiras páginas, o início do livro, o escrevinhador deve dar especial atenção à fluidez das ideias e das frases.

A proposta, de Judith Leyster (1631)

A proposta, de Judith Leyster (1631)

Com ‘fluidez’ pretendo dizer que a leitura se faça sem especial esforço, que o prazer de ler seja imediato, que o enredo e/ou o estilo da escrita cativem de algum modo.

Em tempos que já lá vão, era algo frequente começar por descrições detalhadas de ambientes e personagens, descrevendo verdadeiros quadros num apelo à composição visual. Porém, o risco de ser chato é enorme, como se pode verificar na maioria destes casos.

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Numa evolução que suponho devedora dos scripts para cinema, o mesmo detalhe descritivo se aplicou em ritmo dinâmico de acontecimentos mais ou menos interessantes ou intrigantes. Provavelmente, diminuiu-se o risco do tédio, mas este pode ter sido substituído pelo ‘arranque’ estereotipado que se vai repetindo em livros e autores diferentes.

Sem pretensão de ter receitas, abominando visceralmente as prédicas e sabendo que em literatura tudo vale (e nada é garantido), direi que o condimento mais discreto é o que faz a diferença: a qualidade literária da escrita.

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‘Estou escrevendo um livro…já terminei a numeração das páginas’.

Quando esta existe, o livro pode prometer falar sobre alhos e o escrevinhador estender-se longamente sobre bugalhos, que a coisa até pode ser que resulte bem. Mas lá está! os riscos estão sempre presentes.

Se há muito de intuitivo na escrita, não deixa de ser fundamental a revisão crítica da parte do próprio escrevinhador: o apuro da sintaxe ou a riqueza do vocabulário condicionam a expressão das ideias e da sensibilidade, alteram a relação de forças entre ambas, podem se tornar a assinatura do escrevinhador.

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AULAS DE ESCRITA                                                                                             Professora: ‘Joãozinho, dá-me um exemplo duma frase usando a pontuação correcta. ‘

 

 

Liberdade criativa e autocensura

Onde haja censura legal ou de facto, o escrevinhador pode gozar a liberdade (correndo riscos) de escrever o que bem entende, como bem entende, guardando depois na gaveta ou fazendo circular clandestinamente os seus escritos. Muitos escrevinhadores escreveram e publicaram sob regimes de censura, conseguindo iludir os censores de alguma maneira.

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Mas, independentemente da época, do país e das circunstâncias políticas e sociais, o escrevinhador enfrenta a dificuldade imposta pela sua própria incapacidade em lidar com certos conteúdos, formulações, umas vezes evitando-os, outras encobrindo-os até de si próprio.

A nostalgia escorre dos livros/introduz-se debaixo da pele/e esta cidade sem pálpebras/este país que nunca sonha/logo se converte no único sítio/onde o ar é o meu ar/e a culpa a minha culpa. (1)

A autocensura não é, de modo algum, confundível com a autocrítica: a primeira manifesta-se pela compulsão, negação, recalcamento, abstenção, silêncio, enquanto a segunda é, ou deve ser, uma reflexão ponderada e livre sobre o texto escrito.

Poetas a vir! Oradores, cantores, músicos que estão a vir!/Não é o hoje que me justifica nem que responderá para que vim,/Mas vocês, uma nova linhagem, nativa, atlética, continental, tão grande quanto jamais vista,/Venham! pois vocês são quem deve me justificar./Eu por mim mesmo escrevo apenas uma ou duas palavras indicativas para o futuro,/eu avanço um momento apenas na engrenagem e volto rápido pela escuridão./Eu sou um homem que, perambulando por aí sem nunca parar totalmente, lança um olhar sobre vocês e, depois, desvia sua face,/Deixando isto para que o afirmem e definam-no,/Esperando as maiores coisas de vocês! (2)

Por vezes, quando os escrevinhadores exprimem suas dificuldades em rever, reescrever, reflectir criticamente os textos, suspeito que estejam sob a influência de um mecanismo inconsciente de autocensura. Que me parece ter algo a ver com as clássicas descrições dos fenómenos de recalcamento.

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Isso pelo modo como exprimem a resistência em proceder a qualquer tipo de auto-exame: sentem uma grande fadiga mental, desalento, falta de concentração, aversão, em alguns casos mal-estar, enjoo ou náusea, irritação, impulsos destrutivos (rasgar o texto ou apagá-lo), etc.

Dizem-me teus olhos, claros como o cristal:/”Por ti, bizarro amante, qual é então o meu mérito?”/—Sê charmosa e calá-te! Meu coração, a quem tudo irrita,/ Excepto a candura do antigo animal/Não quer mostrar-te o seu segredo infernal/(…)/Odeio a paixão e o espírito me faz mal! (3)

A ser assim, entendo-o pela função que a escrita possa ter para o escrevinhador: é o seu modo ‘terapêutico’ de lidar com assuntos mal resolvidos, emoções profundas e traumas de que talvez tenha, talvez não, consciência.

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Ora, como já aqui tem sido dito (e também ali, além, acolá e ainda aqui), a qualidade literária pode ter  mais a sofrer do que a ganhar quando a escrita, em vez de ser acto de expressão criativa, resulta num mecanismo qualquer de libertação de tensões. Sem com isso negar o seu valor terapêutico, bem entendido.

-Odeio quando me fazes passar por um idiota.

-Odeio quando me fazes passar por um idiota.

E a possibilidade de, apesar disso ou por causa disso mesmo, estar na origem duma obra-prima.

(1) in Noción de Patria, de Mario Benedetti

(2) Poetas a vir  (Poets to Come) de Walt Whitman, tradução de André Boniatti

(3) in Sonnet d’Automne, de Charles Beaudelaire

Escrevendo a custo

Perguntam-me se, no último post, propunha ao escrevinhador reescrever o livro logo a seguir a tê-lo concluído.

Creio que essa é a ‘mensagem’ ao longo de todo este blog, a de que não há limites à revisão, correcção, alteração, recriação. Ou, a haver, só termina depois de editado o livro (e mesmo assim!)

"Aonde vais buscar inspiração?"

“Aonde vais buscar a inspiração?”

As razões parecem-me evidentes, de qualquer forma estão apresentadas em diversos posts ao longo do blog.

(…) Penetra surdamente no reino das palavras./Lá estão os poemas que esperam ser escritos./Estão paralisados, mas não há desespero,/há calma e frescura na superfície intacta./Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário/Convive com teus poemas antes de escrevê-los./Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam./Espera que cada um se realize e consuma/com seu poder de palavra/e seu poder de silêncio. (…) (1)

Mas não entendo que o processo tenha que se dar ‘logo a seguir a tê-lo concluído’: tanto pode ser durante, como depois, e, sendo depois, até pode haver vantagem que haja algum tempo de intervalo (mas também sobre isso já foi aqui falado).

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Porém, se volto a este assunto é por saber que há uma resistência por parte de muito escrevinhador em repisar os seus escritos, para além da inevitável revisão dos erros, gralhas e gramática defeituosa.

(…) Vida toda linguagem,/há entretanto um verbo, um verbo sempre, e um nome/aqui, ali, assegurando a perfeição/eterna do período, talvez verso/talvez interjectivo, verso, verso. (…) Vida toda linguagem,/vida sempre perfeita,/imperfeitos sòmente os vocábulos mortos (…) (2)

Essa resistência é humanamente compreensível, mas desastrosa. E tanto será maior quanto a motivação para a escrita depender menos do prazer e mais de uma necessidade qualquer.

E já foi dito que não interessa tanto o objecto, apenas pretexto, mas antes a paixão; e eu acrescento que não interessa tanto a paixão, apenas pretexto, mas antes o seu exercício. (…) Mas não deixa a paixão de ser a força e o exercício o seu sentido. (3)

O ideal, se calhar, é a combinação entre o prazer de escrever (seduzir a bela musa) e a necessidade de exteriorizar certas neuras ou fantasias (a louca da casa).

 (…), de certa idade em diante, quando já o meu fel ia corroer os livros que andava publicando, nasceu esse meu famigerado diário. Sobre ele extravasou o meu fel: o meu ódio, o meu desgosto, o meu desespero. (…) 

“Mas por que publicá-lo”(me dirás tu)”se já cumprira a sua verdadeira função, sendo o escape secreto das tuas raivas?” Ai, amigo! como haver vingança onde não conheça o culpado o mal que o fere? e onde não reconheça a mão, não veja a face do vingador?

(…) O temor de ofender, surpreender, escandalizar, irritar, que tanto, nos meus outros livros, me constrangia, aqui desaparecera por completo. (…) E o resultado foi que nunca, literàriamente, me realizei como nesse livro…” (4)

A necessidade está muito presente na esmagadora maioria dos casos, o mesmo não acontece com o prazer de escrever, que resulta para muitos num exercício penoso. E por aqui já se percebe a resistência em retomar o processo, depois de o ter concluído.

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(1) in Procura da Poesia, de Carlos Drummond de Andrade, retirado da Antologia da Poesia Brasileira ed.Verbo

(2) in Vida toda linguagem de Mário Faustino, retirado da Antologia da Poesia Brasileira ed.Verbo

(3) in  Novas Cartas Portuguesas (Primeira Carta I) de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, ed.Moraes

(4) in Os Paradoxos do Bem retirado da antologia O Vestido Cor de Fogo e outras histórias, de José Régio ed.Verbo

E agora algo completamente diferente *

*título de um famoso sketch dos Monthy Python

Pondo de lado os diversos tipos de censura literária e os critérios editoriais, a actividade literária tem evoluído para a dessacralização das regras, a liberdade de opção estética, o direito a escrever como o escrevinhador entende. Inclusive o de versejar com parâmetros métricos ou formais consagrados, anacrónicos ou outros.

Pode-se dizer e, por conseguinte, escrever seja o que for sobre seja o que for. Raramente nos detemos para observar ou confirmar este lugar-comum. Mas habita-o uma enigmática desmesura.(1)

É nesse sentido que formulo a expressão vale tudo e nada é garantido. O ‘nada’, bem entendido, é a receptividade do texto, o seu sucesso entre críticos, editores ou leitores. Ou a esperança de que uma posteridade ofendida vingará a memória do escrevinhador ignorado no seu tempo.

-Porque é que ninguém reconhece a minha genialidade?

-Porque é que ninguém reconhece a minha genialidade?

Vingança póstuma, aliás, ameaçada pela produção (e publicação) massiva de textos com pretensão literária. E a poesia, na minha limitada percepção, é a fórmula literária mais popular actualmente, como era há 500 anos atrás.

Se nada o limita, se nada tem a perder, porque há-de o escrevinhador abafar sua criatividade?

-Para teu bem, é melhor que o que vais dizer seja realmente importante!

-Para teu bem, é bom que o que tenhas a dizer seja realmente importante!

Agora vou escrever ao correr da mão: não mexo no que ela escrever. Esse é um modo de não haver defasagem entre o instante e eu: ajo no âmago do próprio instante. Mas de qualquer modo há alguma desfasagem.Começa assim: como o amor impede a morte, e não sei o que estou querendo dizer com isto.(2)

Existe uma componente experimental na escrita, a nível do estilo, do tema, do enredo, até da própria linguagem e grafismo, que, por natureza, tende a aperfeiçoar com a persistência e o tempo. Se isso não acontecer, desista, caro escrevinhador: o seu caminho não é por aí.

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(a respeito da poesia pode ainda dizer-se:—A lâmpada faz com que se veja a própria lâmpada. E também à volta.) 

(Evita as tentações da teoria: o poema é uma coisa veemente e frágil. E não é frontal, mas insidiosa.) (3)

E como calibrar critérios de ‘perfeição’ numa via experimental? Seduzindo leitores, parece-me óbvio. Mas pode alguém seduzir se não estiver, por sua vez, seduzido por aquilo que faz?

O pior é que pode, o excessivo rigor ou a simples insegurança não impedem que se escreva textos gloriosos que o próprio escrevinhador tentará destruir, quantas vezes com êxito. Recorde-se o caso clássico do poeta Virgílio: deixou indicações escritas para que a obra-prima Eneida fosse destruída (eventualmente por estar a morrer e ter deixado a obra sem o desenvolvimento previsto, nem as revisões necessárias).

LIVROS RAROS "Procuro por algo que não tenha sido escrito por uma celebridade."

LIVROS RAROS
“Procuro por algo que não tenha sido escrito por uma celebridade.”

…E enquanto mantiverdes ainda, seja no que for, vergonha de vós próprios, não sereis capazes de ser dos nossos.(4)

Ora, torna-se pedagógico para o próprio escrevinhador desenvolver experiências, fugir às rotinas técnicas, temáticas e outras.

Deste modo torna-se consciente dos seus limites e percebe melhor aonde pode ir, se tentar.

Acima de tudo, a meu ver, torna-se crítico de si mesmo, nomeadamente das fórmulas estereotipadas como estrutura as ideias, como formata a sua expressão, o próprio vocabulário.

O que atrai o escritor, o que agita o artista, não é directamente a obra, é a sua busca (…). Daí que o pintor a um quadro prefira os diversos estados desse quadro. E o escritor muitas vezes deseja não acabar  quase nada, deixando no estado de fragmentos cem narrativas cujo interesse consistiu em terem-no conduzido a certo ponto.(5)

LIVROS MADRUGADA DE OUTONO "A boa notícia é que tu escreves sobre o que sabes. Infelizmente, não sabes muito."

LIVROS MADRUGADA DE OUTONO
“A boa notícia é que tu escreves sobre o que sabes. Infelizmente, não sabes muito.”

(1) in Presenças Reais de George Steiner ed.Presença trad.Miguel Serras Pereira

(2) in Água Viva de Clarice Lispector ed.Nova Fronteira

(3) in Photomaton & Vox de Herberto Helder ed.Assirio e Alvim

(4) in A Gaia Ciência de Frederico Nietzsche, ed.Guimarães & Cª, trad.Alfredo Margarido

(5) in O Livro Por Vir de Maurice Blanchot ed.Relógio d’Água trad.Maria Regina Louro

O abismo sem fundo da criatividade

Escrever sem preocupações de agradar, procurando explorar um universo pessoal de referências, sentidos, preocupações e desejos, é um objectivo comum a muito escrevinhador.

-Está bem,filho, vai lá baixo.

-Está bem,filho, acho que é tempo para ires lá baixo. Mas faças o que fizeres, não os deixes começar uma nova religião.É a última coisa que precisam!

Pessoalmente, sou avesso a declarações de principio pois o que li ao longo da vida leva-me à conclusão de que vale tudo, mas nada é garantido. Ou seja, sou alérgico a ‘manifestos’ e gosto de me centrar na matéria-prima literária: texto, ideia, desenvolvimento, sensibilidade, estética.

Autobiografia de celebridade corrigida

Autobiografia de celebridade corrigida: título do livro grande”Tudo o que eu quero dizer sobre MIM” (antes) – título do livro pequeno”Tudo o que você quer saber sobre MIM” (depois)

Por isso,tanto me dá que o escrevinhador declare perseguir a fama, o sucesso e a simpatia dos leitores, como abjure qualquer cedência às modas.

Na verdade, a grande maioria nem pensa no assunto a menos que lho perguntem.

Uau! Tive cá um sonho esta noite! -Sim? Sobre o quê? -Não faço ideia. -Tens mesmo jeito para contar uma estória.

-Uau! Tive cá um sonho esta noite!
-Sim? Sobre o quê?
-Não faço ideia.
-Tens mesmo jeito para contar uma estória.

E, inevitavelmente, o material escrito produzido irá sempre, sempre, exprimir de algum modo (e não preciso de recordar Freud) o tal universo que cada um traz consigo, mais os seus demónios interiores e fantasmas exteriores.

Ou seja, este é um tópico pouco relevante.

Ou talvez não. Depende.

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“Toda a vida ele tem estado convencido de ser um exemplo a ser seguido em alguma coisa…só não consegue imaginar em quê, exactamente.”

Tentando explicar melhor, direi que muitos escrevinhadores parecem estar mergulhados num profundo estado de ingenuidade, à semelhança dos autores daquelas redacções escolares da minha infância, fosse sobre a Primavera, fosse sobre ‘A minha Mãe’.

Há, também, os que exploram suas facetas existenciais, maníacas ou não, e os que procuram apelar para a emoção do leitor, de forma mais ou menos elaborada.

Vale tudo, certo, mas valerá mais se o material escrito for revisto e corrigido pelo escrevinhador num segundo, terceiro tempo, algo mais distanciado do tempo criativo, e centrado na tal matéria-prima.

Assim não

-Assim não, James! Como meu aluno precisas de me fazer co-autor e citar pelo menos dois artigos meus em cada uma das tuas publicações!

Ou talvez não. Depende?! Mas depende de quê?

A oficina de escrita

Um problema comum a imensos escrevinhadores principiantes, e de todas as idades, é o de reservar os momentos dedicados à escrita para os dias de inspiração. Infelizmente, muitos desses dias acabam por se reduzir a escassas horas, às vezes menos. Obviamente, assim não vão lá.

-Posso ajudar? -És uma cerveja?

-Posso ajudar?
-És uma cerveja?

Escrevinhadores com obra publicada e nome reconhecido  afirmam que praticam o acto da escrita diariamente por uma questão de disciplina. Entre os dois extremos encontram-se soluções de compromisso mais satisfatórias, provavelmente.

Quando um escrevinhador diz que tenta redigir um poema diário, mesmo que depois o rasgue ou o atire para o fundo da gaveta (tudo em sentido figurado, suponho), pergunto-me (e às vezes pergunto-lhe) que outras (pre)ocupações literárias se impõe.

Por exemplo: encontra algo em comum aos poemas entretanto produzidos? O quê: o tema, o estilo, o tom?

Acha que os exames de escolha múltipla são um modo objectivo de avaliar o conhecimento? A: SIM B: A e C C: A e B D: todas as respostas acima

Acha que os exames de escolha múltipla são um modo objectivo de avaliar o conhecimento?
A: Sim
B: A e C
C: A e B
D: Todas as respostas acima

E será que os expõe à apreciação ou os confronta com poemas de outros para, de algum modo, perceber o que possa estar a mais ou a menos, o que é dito igual, mas de outro modo, o que pode haver de fraco, deselegante ou, simplesmente, mal elaborado?

Não se trata só de escrever. Rever e reescrever, sem dúvida. Sem nunca descurar a auto-avaliação, confrontando com os escritos de terceiros, com a crítica fundamentada.

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E, repetindo-me pela enésima vez, ampliar o leque de leituras para escapar a uma ‘formatação’ demasiado datada, ainda que contemporânea.

Bastam estes exercícios para que a escrita comece a surgir fluída e harmoniosamente? Isso é que era bom!

"O segredo para ser um escritor está em captar toda a tristeza e agitação bem lá no fundo do teu ser e canalizá-lo para um livro de culinária dietética.

“O segredo para ser um escritor está em captar toda a tristeza e agitação bem lá no fundo do teu ser e canalizá-lo para um livro de dietas.”

Oferta dum fim-de-semana de sonho

Sugestão para um fim-de-semana de chuva, vento e frio: o escrevinhador reunir seus textos, mesmo os mais díspares ou fragmentários, e perceber se formam uma unidade, algum tipo de conjunto ou de conjuntos.

"A nossa investigação mostra como a hereditariedade e o ambiente são igualmente significativas, mas nenhuma é mais importante do que a regulamentação legal."
“A nossa investigação prova como a hereditariedade e o ambiente são ambos significativos, mas nenhum é mais importante do que a regulamentação legal.”

Dito de outra maneira: guardar uma certa distância em relação ao que escreveu, olhar os textos numa qualquer perspectiva, estabelecer relações, descobrir rupturas.

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Sim, é um modo de auto-avaliação. Uma abordagem crítica. Tanto mais útil se o material reunido tem anos, ou é algo extenso: tempo e trabalho, portanto. Produtividade, criatividade, vocação, chamem-lhe o que quiserem.

Fundamental mesmo é perceber a intenção original e o resultado, entender a adequação entre os recursos (vocabulário, processos estilísticos), o contexto (propósito, tema) e a execução (abordagem, ordenação, desenvolvimento, conclusão).

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Sem cair na tentação de jogar com tudo ao fogo aceso na lareira (tecla ‘Delete’).

Problemas críticos e escríticos

O escrevinhador sofre como o comum dos seres humanos, é um facto. Porém, por tara literária ou simples insegurança, tem tendência a reflectir o sofrimento naquilo que escrevinha.

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“Podemos aumentar a dosagem? Continuo a ter sentimentos.”

Ora, poucas coisas o atormentam como a rejeição dos escritos por parte dos leitores ou as dúvidas sobre a qualidade dos textos.

Conforme o momento ou o temperamento, umas vezes está convencido de ter feito uma grande coisa, outras vezes receia que muito pelo contrário, tem dias que culpa o mundo por votarem-no ao anonimato, e tem noites que se convence que não tem, nem terá nunca, valor algum.

O discurso quase que era interessante. As pessoas começaram a acomodar-se e a fingirem interesse.

O discurso quase que era interessante. As pessoas começaram a acomodar-se e a fingirem interesse.

Quando vai a uma dessas tertúlias de poesia ou publica um opúsculo, recebe as ovações da praxe, palmadinhas nas costas, talvez ouça sinceros elogios de amigos e familiares, mas não precisa de ser cínico para perceber que uma voz crítica seria o melhor tributo ao seu esforço: alguém que o lesse, apreciasse e emitisse um juízo. Favorável ou não, o importante é que fosse fundamentado.

-2500 cientistas dizem que somos responsáveis pelo aquecimento global. -Gostaria de ouvir uma segunda opinião.

-2500 cientistas dizem que somos responsáveis pelo aquecimento global.
-Gostaria de ouvir uma segunda opinião.

Mas críticas fundamentadas são como as boas obras: exigem conhecimento, dedicação e talento.

Assim, resta ao escrevinhador desenvolver um espírito auto-crítico. E, como é óbvio, de forma construtiva.

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“Lá está o Williams outra vez…tentando ganhar apoios para a sua teoria do Little Bang”

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Como me venho repetindo frequentemente (sim, sou mesmo chato…), um dos benefícios de uma cultura bibliográfica razoável está no apuro do sentido estético do escrevinhador, levando-o a confrontar a sua mesquinha produção com os gloriosos textos dos grandes autores.

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Não se trata dum exercício masoquista, nem é o meu modo de atirar para o desespero e para o silêncio a esmagadora maioria de nós, aspirantes à Fama e à Fortuna, mas o uso do bom senso que alia o prazer da boa leitura com a prática da auto-avaliação construtiva.

Isso não dispensa que sujeite os seus escritos à leitura de duas ou três boas almas, de preferência gente com algum critério literário, assim como sinceridade ingénua e brutal.

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“Infelizmente é a palavra deles contra a sua.”

Certamente, o escrevinhador ganhará mais do que algumas equimoses na auto-estima, mas na condição de não retaliar denegrindo as boas almas depois da apreciação feita. Principalmente, deve desconfiar se elas se limitarem a considerações muito gerais e a pancadinhas nas costas: a crítica deve expor seus argumentos.

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O tempo depois ajudará a ler o que escreveu, provavelmente com menos compreensão e simpatia, mas mais rigor. E a ponto de duvidar ter sido ele mesmo a escrever ‘aquilo’.

Tudo isso é progresso, evolução, amadurecimento.

Ou, retomando um dos temas da época: a promessa de renovação nestes meses em que a natureza parece adormecida.

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A ter em conta, quando escrever…

"Queridos Mãe e Pai. Obrigado pela infância feliz. Vocês destruíram qualquer possibilidade de me tornar uma escritora."

“Queridos Mãe e Pai: Obrigado pela infância feliz. Vocês destruíram qualquer possibilidade que tivesse de me tornar uma escritora.”

Três tópicos para abordar a escrita de não-ficção: explicar, temperar e vaguear. Juntos ou em separado:

– a pessoa que se propõe escrever tem algo para dizer a propósito de alguma coisa, então convém que se explique ao que vai, como vai, porque vai, e outras minudências que podem incluir ainda o “porquê” ele, autor, a escrever sobre tal ou tais coisas;

– o modo como lida com o tema e outros temas que traga a propósito, o tom e o ritmo como aborda temas e como os relaciona, passando duns para outros, até à (in)conclusão final;

– a objectividade no tratamento dos temas, avançando para uma conclusão anunciada desde o início ou que o enredo vai construindo. Em qualquer dos casos acumulando factos, desenvolvendo raciocínios, citando testemunhos, estudos;

– ou a descarada subjectividade de quem fala seriamente em alhos, jamais esquecendo a importância dos bugalhos, estabelecendo afinidades, antagonismos, relacionamentos, cumplicidades, que tanto podem estar subjacentes à realidade de uns e de outros, como podem depender (quase) exclusivamente da sensibilidade de quem escreve.

Conta a experiência de vida do autor? Como não poderia contar? Para o melhor, ou para o pior, a experiência de vida de cada autor está presente de modo indelével. Até para aqueles autores moralistas, celibatários e castos, que escrevem longamente sobre as virtudes (e os perigos, claro) do amor conjugal, da vida sexual a dois, da educação da prole e outros temas assim.

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E conta, claro, a inevitável cultura, seja académica, seja bibliográfica, seja pelo convívio com outras criaturas da mesma espécie, humana ou outra. Dito de outra maneira: é preciso aprender, é preciso ler, é preciso debater. Sem dúvida, viver plenamente a vida ajuda muito. Mas isso leva a outras discussões, a começar logo pela própria pertinência e sentido desse “viver plenamente”.

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Não se trata aqui de apresentar receitas, sempre insisto em lembrar, mas de sugerir que a escrita goza duma extraordinária liberdade formal, se bem que não isente o seu autor das consequências.

Não importando agora falar das leis contra a difamação ou para proteção da moral e dos bons costumes, nada, nem ninguém, livra o autor da asneira sem o rigoroso trabalho de investigação a desenvolver pelo próprio, temperado pelo exercício saudável e profilático da autocrítica. E, mesmo assim…