O uso da palavra
Para o escrevinhador, a importância da palavra deve ser bem medida, e não tanto pelo valor intrínseco, mas pelo de troca. É verdade que a palavra tem a história da sua formação e genealogia, assim como a do seu uso e evolução no tempo e no espaço, que é aquilo que, à falta de melhor, chamo de valor intrínseco. Mas o escrevinhador não tem de ser erudito, nem tem de supor a erudição dos leitores. O que tem, creio eu, é de conhecer o valor dado aqui e agora à palavra e que é o que chamo o seu valor de troca.
(…) a troca, por sua vez, cria valor. E isso de duas maneiras. Primeiramente torna úteis coisas que sem ela seriam de utilidade fraca ou talvez nula: que pode valer um diamante para os homens que têm fome ou necessidade de se vestir? Basta, porém, que exista no mundo uma mulher a quem se deseja agradar e um comércio suscetível de trazê-la às suas mãos, para que a pedra se torne “riqueza indireta para seu proprietário que dela não precisa (…) daí a importância do luxo, daí o fato de haver diferença do ponto de vista das riquezas, entre necessidade, comodidade e prazer. Por outro lado, a troca faz nascer um novo tipo de valor, que é “apreciativo”: organiza entre as utilidades uma relação recíproca, que duplica a relação com a simples necessidade. (1)
Este valor de troca é o dado no momento. Recordo, quando tinha cinco, seis anos, meu Avô ralhar-me por chamar ‘chato’ a alguém ou alguma coisa, o que me deixou bastante perplexo porque sua filha, minha Mãe, não só tolerava o uso desta palavra como a usava sem reservas. Muito mais tarde, nos primeiros anos da adolescência, percebi que as razões da aversão do meu Avô—inequivocamente na base do sentido depreciativo dado à palavra—já não eram percebidas quando usadas entre pessoas das gerações seguintes. Ou, se eram, só mesmo por adolescentes, ainda fascinados com a polissemia e subentendidos que as palavras banais podem ter. Na verdade, todos sabemos que um chato incomoda, mas dificilmente encontramos alguém que nos irrite tanto que dê coceira.
O ‘diz-me com quem andas que eu te direi quem és’ não quer dizer nada. Judas andava com Cristo. E Cristo andava com Judas. (2)
O ‘sentido comum’ dado aqui e agora é aquele que, com quase toda a probabilidade, o leitor dará à palavra. Não levar isso em linha de conta gera problemas de comunicação, prejudicando a leitura e provocando críticas como a de texto confuso, difícil ou pedante. Ou tudo isso à vez. O que não impede que o escrevinhador possa explorar o tal valor intrínseco (bem pelo contrário, como adiante tentarei explicar), não por pretensões eruditas (pelo menos, no caso da escrita poética ou de ficção), mas por outras: a de levar a interpretação do texto para diferentes níveis de entendimento, seja pela polissemia, seja pela ambiguidade, ou, até mesmo, pela sonoridade. Importante é que seja disso ciente, para não falhar o efeito pretendido.
(…) o romance popular não inventa situações narrativas originais, mas combina um reportório de situações ‘tópicas’ conhecidas, amadas pelo próprio público (…). (…) a catarse, por razões comerciais, deve ser optimista. (3)
O uso de ‘palavras caras’ tanto pode servir para mascarar o vazio do discurso (senão mesmo a sua falsidade), como ser sintoma da dificuldade do escrevinhador em lidar com o tema. A comunicação na era de massificação, em que o número de receptores (leitores, ouvintes, espectadores) contam-se pelos milhões (e muitos milhões), tem demonstrado como o uso deliberado da linguagem ‘técnica’, ‘erudita’, ou outras variantes de um jargão acessível a ‘especialistas’, pode iludir e manipular, assim como o seu uso irreflectido ou mal calculado pode se virar contra o comunicador.
Uma descrição que parece neutra mostra o que tem de tendencioso quando se lhe pode opor uma descrição diferente (…). (4)
Na vida académica e na área das ciências tem havido alguma literatura dedicada a desmontar discursos, expondo a sua vacuidade por detrás de formulações verdadeiramente incompreensíveis. Que não são outra coisa senão variantes do famoso conto do ‘rei vai nu’.
O fazedor de dinheiro não é a personalidade mais palatável, mas é muito preferível ao pretenso intelectual. (5)
Daí que, numa época em que ‘o livro’ se está tornando um objecto incómodo, em que a comunicação escrita sofre amputações e próteses aberrantes, em que o próprio discurso oral é ameaçado pela vacuidade dos formatos convencionados para debate e exposição de ideias, seja importante que o escrevinhador consiga fascinar o leitor ajudando-o a descobrir o valor intrínseco da palavra. Na verdade, ao fazê-lo, limita-se a prolongar uma longa tradição anterior à própria escrita, mas fá-lo num tempo em que essa tradição está ameaçada pela própria parafernália técnica que era suposto contribuir para uma dinâmica cultural incomparavelmente mais rica do que a de todas as épocas anteriores.
A habilidade do artista em sair da frente do choque violento da nova tecnologia de qualquer época e evitar tamanha violência com absoluta consciência, vem de há muito tempo. (6)
Para os não-Iniciados, a palavra escrita ou oral pode ter um valor misterioso pelo grafismo e sonoridade, dando realce à simbologia ou à magia. Mas para os Iniciados como nós, meros leitores e escrevinhadores, sabemos bem como esse valor é uma moeda sujeita a flutuações e o mistério reside, exclusivamente, nos favores da bela Musa. Nesse aspecto, creio que nada de significativo tem mudado nos últimos quatro mil anos.
(…) sob a sua forma mais alta, a invenção literária ensina-nos a enriquecer, a complexificar, de um ponto de vista heurístico, os confins da habitação comum que não nos damos ao trabalho de reconhecer. Abre janelas através das quais nos convida a ver um terreno novo, novas fontes de luz. Narra histórias através das quais ouvimos a voz da nossa identidade privada e comum. (7)
Há palavras que caíram em completo desuso, tal como o discurso que as suporta, e há outras que evoluíram, alterando significados conforme a geografia e a comunidade de falantes. A usura do Tempo e as transações culturais têm esse efeito natural e inevitável. A diferença da época actual em relação às anteriores (há 40 como há 400 anos), é que o processo tem sido muitíssimo mais rápido, associado à fragmentação da comunidade de falantes no interior das próprias gerações e no mesmo espaço social. Isto tudo, e muito mais (que não cabe a este humilde escrevinhador desenvolver aqui), dificulta obviamente a comunicação, mais ainda se for comunicação escrita com pretensões literárias.
A intensidade da agitação em torno da ortografia é apenas um índice da novidade que representava a palavra impressa, e dos seus efeitos centralizantes quanto à conformidade. (…) É de presumir ser impossível praticar um erro de gramática numa sociedade não-alfabetizada (…) a diferença entre a ordem oral e a visual é que cria as confusões entre o que é e o que não é gramaticalmente correcto. (8)
Por isso, insisto: é importante o escrevinhador preocupar-se em ‘chegar’ a todos esses potenciais leitores desconhecidos de modo a fazer-se entender e, principalmente, a seduzi-los com palavras (e, neste ponto do post, o leitor já poderá perceber que ‘palavra’, aqui, também se entende por ‘tecido de palavras’ ou ‘texto’), levando-os a procurar mais além da superfície, imediatez, uso comum… para lá do valor de troca, portanto. E quando o leitor começa a saber distinguir as pérolas da simples fancaria, é porque já reconhece o valor intrínseco das coisas. Como as palavras.
As palavras com que tens convivido/ durante tanto tempo, continuam/ servindo-te para algo? Poderás valer-te delas/ quando os antídotos/ contra a tua própria decepção/ já se esgotaram? (9)
(1)in As Palavras e as Coisas de Michel Foucault, trad.Salma T.Muchail ed.Martins Fontes
(2) in Livro Vermelho dos Pensamentos de Millôr de Millôr Fernandes, ed.Nórdica
(3) in Il Superuomo di Massa de Umberto Eco, ed. Tascabili Bompiani
(4) in O Império Retórico de Chaïm Perelman, trad.Fernando Trindade e Rui A.Grácio, ed.ASA
(5) in Closing of the American Mind de Allan Bloom, ed. Simon and Schuster Paperbacks
(6) in Understanding Media de Marshall McLuhan, ed.A Mentor Book
(7) in Gramáticas da Criação de George Steiner, trad. Miguel Serras Pereira ed.Relógio d’Água
(8) in A Galáxia de Gutemberg de Marshall McLuhan, trad.Leónidas G.Carvalho e Anísio Teixeira ed.Companhia Editora Nacional
(9) in Bordes del Silencio La noche no tiene paredes de J.M. Caballero Bonald, Obras Completas ed.Austral