Vale a pena escrever?
RESPOSTA: se alguém me puser esta pergunta, minha resposta automática é NÃO, não vale a pena.
Ó mestre Caeiro, só tu é que tinhas razão!/ Se isto não é, porque é que é?/ Se isto não pode ser, então porque pôde ser? (1)
Esta é a resposta preconceituosa de quem entende que a urgência da escrita se impõe ao escrevinhador, que depois defrontará a terrível, incontornável questão: o que escrevi tem algum valor?—uma questão totalmente diferente, portanto.
Sonho que sou a Poetisa eleita,/ Aquela que diz tudo e tudo sabe,/Que tem a inspiração pura e perfeita,/ Que reúne num verso a imensidade! (2)
Preconceito que radica, também, na crença de que a dita urgência é um dano colateral à exposição precoce à audição de contos e leituras, às leituras de livros de texto e banda desenhada, ao visionamento de filmes.
O que me dá prazer não é o vinho, não!/ Nem a música, nem o canto./Apenas os livros são o meu encanto/ E a pena: A espada que tenho sempre à mão. (3)
Essa exposição (que não tem de ser, na verdade, precoce) não é condição suficiente para responder afirmativamente à segunda questão: a do valor do que se escreveu. Outras formas de expressão podem surgir em alternativa e com outra qualidade; no mínimo, resulta no desenvolvimento duma percepção mais subtil, na sensibilidade à ironia, num grau de exigência maior, coisas assim que fazem de alguém uma pessoa mais interessante.
Eu não soube onde entrara,/ mas, quando ali me vi,/ sem saber onde estava,/ grandes coisas entendi;/ não direi o que senti,/ pois me fiquei sem saber,/ toda a ciência transcendendo. (4)
Na realidade, porém, existe uma crescente número de pessoas sem qualquer relação afectiva com a leitura e, inclusive, com um domínio deficiente da escrita, determinadas em produzir textos, seja por razões estéticas, sentimentais ou profissionais
(…) o número de homens ignorantes e corajosos/ será maior ou menor que o número de homens corajosos e cultos? // (…) Se o assunto fosse assim tão simples…/ Mas não. (5)
Como dizer-lhes que não vale a pena serem persistentes e produtivas nessa determinação? Na verdade, nem se colocam a questão de escrever (ou não), mas antes a de escrever como?
Tu que sabes em que recantos das terras invejosas/ O Deus ciumento esconde as pedras preciosas,/ Ó Satã, tem piedade da minha grande miséria! (6)
Preconceito de lado, a tarefa é ingente mas factível; tudo depende do escrevinhador e do modo como se move no seu labirinto. Mesmo o mais aborrecido dos manuais pode estar organizado com um mínimo de lógica e ter sido escrito numa linguagem clara, duas características que são grandes qualidades e verdadeiros ‘facilitadores’ (palavra horrível muito em uso nas primeiras décadas do sec.XXI) para quem tenha de lidar com assuntos chaaaatos.
A bela e pura palavra Poesia/ Tanto pelos caminhos se arrastou/ Que alta noite a encontrei perdida/ Num bordel onde um morto a assassinou. (7)
Contudo, ambas qualidades exigem um razoável domínio da matéria a tratar e da sua expressão escrita, qualidades que andam muitas vezes desirmanadas.
(…) E com um mimo que só sabe ter uma ama/ Cobre-me bem, “durma, não cisme”, dá-me um beijo,/ E sai. Finge que sai, ela cuida que eu não vejo,/ Mas fica à porta, à escuta, a ouvir-me falar só,/ E não se vai deitar…/ Onde há, assim, uma Avó? (8)
Talvez por isso, surgem escritos num tom autobiográfico, meio confessional, meio exploratório, onde se cruzam dados objectivos (estatísticas, história, ciências) com a profunda subjectividade do olhar do escrevinhador, podendo até desenvolver narrativas ficcionadas.
Todo lo que he vivido, todo/ lo que he salvado vigilantemente/ del feroz exterminio de los dias,/ todo cuanto yo fui, hoy os lo ofrezco,/ ojos que seguiréis el rastro de estas letras, /(…) (9)
À extraordinária liberdade deste processo—ao nível dos factos, das personagens e do enredo— alia-se o tratamento mais ou menos rigoroso de assuntos concretos, reais, observáveis. Combinação que pode resultar numa abordagem refrescante, inspiradora, bem-humorada, poética… ou tudo isso em simultâneo.
Poeta, não, camarada,/ eu sou também cauteleiro;/ ser poeta não dá nada/ vender jogo dá dinheiro (10)
Para quem não confia na bagagem literária dos seus anos de formação (infância, adolescência), explorar a sensibilidade e o olhar crítico com que a vida o enriqueceu torna-se um valor imenso em qualquer proposta artística. Aproveitando as experiências de vida e as histórias familiares, a escrita pode vencer os escolhos normais da criação literária e compensar certas deficiências com a inspiração genuína, uma perspectiva original, uma tonalidade distinta.
Imaginária menina/ entra em roda imaginária:/—Roseira que dás espinho,/ que dás espinho e dás flor:/ roseira de meu caminho/ dá ciranda aonde eu fôr.// (…) que se houve espinho houve rosa. (11)
As boas regras gramaticais e o exercício duma escrita literária acabarão por se incorporar com o tempo, muita prática e aprendizagem. E com uma ajudinha preciosa que pode chegar de modo abrupto e, até, ofensivo. Mas quem disse que escrever vale a pena?
Las cú. Lavitebá, Foscan moldé ca./ Divilanvoris cermalagos cía./ Ar conta latilosde balatía/ ormela banorcali tonzosteca. (12)
(1) ‘A Partida’ in Poesias de Álvaro de Campos, ed.Planeta DeAgostini
(2) ‘Vaidade’ in Livro de Mágoas de Florbela Espanca, ed.Bertrand
(3) de Al-Kutayyr in O meu coração é árabe, colectânea e tradução de poesia luso-árabe de Adalberto Alves, ed.assírio&alvim
(4) ‘Coplas del mismo hechas sobre un éxtasis de alta contemplación’ in Poesias Completas de San Juan de la Cruz, ed.Planeta DeAgostini
(5) ‘Canto IV’ in Uma Viagem à Índia de Gonçalo M. Tavares, ed.Caminho
(6) ‘Les Litanies de Satan’ in Les Fleurs du Mal de Charles Beaudelaire, ed.Gallimard
(7) ‘A Bela e Pura’ in Mar Novo de Sophia de Mello Breyner Andresen, ed.Caminho (Obra Poética vol.I)
(8) ‘Males de Anto’ in Só de António Nobre, ed.A Bela e o Monstro lda
(9) ‘Todo lo que he vivido’ in Las Adivinaziones de J.M. Caballero Bonald, ed.Austral (Somos el tiempo que nos queda obra poética completa 1952-2009)
(10) ‘Ocasionais’ in Este livro que vos deixo… de António Aleixo, ed.Vitalino Martins Aleixo
(11) ‘Rosa da Roda’ in Rapsódica de Stella Leonardos, ed.Orfeu
(12) ‘las cu la vi te ba fos can mol de ca’ in A Saga/Fuga de J.B. de Gonzalo Torrente Ballester, ed. Dom Quixote