Escrever sobre o indizível
Por definição, o indizível é o que não se pode dizer. Se não pode porque não deve ou se não pode porque não pode mesmo, são ‘impossibilidades’ bem diferentes.
Às vezes, as recordações se parecem a alguns objectos, aparentemente inúteis, pelos quais sentimos um confuso apego. Sem saber muito bem porque razão, não nos decidimos a deitá-los fora e acabam amontoando-se no fundo desse gavetão que evitamos abrir, como se ali fossemos encontrar alguma coisa que não se deseja, ou até que se teme vagamente. (1)
No primeiro caso, pode decorrer da censura moral ou da proibição legal que impedem a expressão de ideias. O que é indizível aqui e agora deixa de o ser noutro lado ou noutro tempo, senão for mesmo agora e aqui de modo mais ou menos anónimo, publicado clandestinamente, ao arrepio das leis e dos costumes. Literariamente falando, não se trata do indizível mas do não-permitido, e a história da literatura é recheada de episódios a este respeito.
(…) Animam-no, como poeta e artista, os heróis e os criminosos, desde que o mesmo sol os doire belos. (2)
Contudo, ainda neste caso, existem graus de dificuldade: escrever sobre alguém que tem um comportamento condenável a todos os títulos, e fazê-lo de modo a sugerir uma leitura positiva, que cause a involuntária compreensão, senão mesmo a concordância do leitor, é mais simples do que o próprio texto assumir os valores condenados e apresentá-los como válidos, sem a clássica inversão de valores ( o que é bom passa a mau e vice-versa).
(…) É impossível que recebamos dela [Natureza] um sentimento que a ofenda e nesta certeza podemos entregar-nos às nossas paixões, seja de que índole e violência forem (…). (3)
Do ponto de vista estritamente literário, creio que o que vale é a forma, mais do que os conteúdos, e pode resultar. Aliás, essa é a função profiláctica das leis proibitivas e dos actos de censura prévia: evitar a sedução das leituras perigosas.
Convém mostrar as repulsões do crime lá embaixo, onde a providencia social lhes cavou a paragem;ou é melhor conduzir, por entre hortos amenissimos, os nossos personagens engrinaldados, e mettel-os no ceu finalmente? (4)
Já o indizível, propriamente dito, é toda uma outra coisa: a sua expressão por palavras distorce, desvaloriza, falseia, ilude, por maior que seja a boa vontade de quem se exprime em não faltar à verdade (à sua verdade, pelo menos). E isso porquê? Uma imagem vale por mil palavras, a palavra é de prata e o silêncio é de ouro, e outros ditos tentam responder à diferença entre o impacto não-verbal de certas experiências (vivenciadas ou pensadas) e a expressão delas.
Finalmente, existe outra expressão frequente que é igualmente impenetrável por cérebros não-indígenas. Por exemplo, a frase “Vá lá a gente saber porquê!”. Um estrangeiro interpreta-a como significando “Vamos todos àquele sítio para podermos averiguar as causas do sucedido”, quando, na verdade, significa incompreensivelmente que não vale a pena ir a seja onde for, porque não há maneira de saber seja o que for. Eles lá sabem porquê… (5)
A matemática e a música serão melhores veículos para transmissão do indizível do que a linguagem verbal, dizem os entendidos e tendo a concordar (ainda que abissalmente ignorante a respeito das linguagens matemáticas e musicais).
Quando fui a primeira vez à terra natal de Amadeo, dezoito anos depois da sua morte, a luz na paisagem e as cores nas proporções eram as mesmíssimas nos seus quadros de pintura. (…) Toda a sua arte reflecte o seu rincão natal. E nunca é o rincão natal o que o pintor retrata. O seu rincão natal são as suas próprias cores, as do seu rincão natal. (6)
Mas é difícil lidar com o indizível no dia-a-dia sem cair na tentação de o exprimir, já que de outro modo torna-se uma experiência profundamente pessoal e única, sendo os escrevinhadores seres sociais e comunicadores por natureza, como a generalidade dos mamíferos.
Neste assunto, obscuro em extremo, farei o possível por ser claro. Ignoro se o conseguirei e— sem mais preâmbulos— vou começar. (7)
Daí haver escrevinhadores de todos os tempos a tentar contornar a impossibilidade e dizerem algo sobre o indizível, seja pela negativa, seja por comparação, seja recorrendo à metonímia: todo um arsenal retórico que permite exprimir o que não se sabe ou o que se julga saber mas não se entende.
Nesse caso, ouve-me em silêncio. Como este recanto parece ter algo de divino, se, no decorrer do meu discurso, me tornar possesso das Ninfas, não estranhes, (…). (…) Pode acontecer que a inspiração divina se esgote, mas isso fica ao arbítrio dos deuses. (8)
Naturalmente, a poesia sempre teve inclinação para enfrentar o desafio através dos seus recursos extra-verbais (inspiração, paixão, loucura) que lhe permite ter um pé (senão ambos os pés) noutros mundos e a cabeça nas nuvens.
(…) O que aqui/ não está escrito é já a única/ prova de que disponho/ para reconhecer-me, interromper/ meu processo de erosão entre recordações/ urgentes. // Por aquela palavra/ a mais que disse então, trataria/ de dar minha vida agora (9)
Pessoalmente, destaco toda a literatura que se situa na categoria do ‘absurdo’ (que não é a mesma coisa que a ‘fantasia’, atenção!): através de jogos de palavras, pela criação de palavras próprias, distorcendo regras gramaticais elementares, expandindo ou contraindo de forma absurda (claro está!) maneirismos narrativos ou dialogais, consegue “dizer” mais sobre o indizível do que a milenar literatura séria sobre o Inefável.
O E parecia um pente, o S uma serpente, o O um ovo, o X uma cruz de lado, o H uma escada para anões, (…). Não via diferença entre desenhar e escrever.
(…) Porque as letras e os desenhos eram irmãos de pai e mãe: o pai era o lápis afiado e a mãe a imaginação. (…) Estas palavras que nasciam sem ela mesmo querer, como flores silvestres que não precisam de ser regadas, eram as que mais gostava, as que lhe davam mais alegria, pois só ela as entendia. (…) e as chamava de “farfanías”. Quase sempre a faziam rir. (10)
Mas a que mais me impressiona é a literatura sobre o Horror (não confundir com zumbis e quejandos), como a dos campos de concentração e de extermínio, a das perseguições e genocídio. Autores que passaram pelo Horror, testemunhas e vítimas ao mesmo tempo, e que conseguem pôr por escrito a experiência vivida, a própria e a de outros, mantendo um pudor e sangue-frio extraordinário na descrição, na valoração, no juízo.
(…) E tinham sido conduzidos para os balneários, onde, disseram-me, também havia tubos e chuveiros: só que, deles, não tinham feito sair água, mas gás. Não soube tudo isto de uma só vez, mas a pouco e pouco (…). Entretanto, ouço, são, até ao fim, muito amáveis para eles, tratam-nos carinhosamente, às crianças é permitido cantar e jogar à bola, e o local onde são gaseados é muito bonito e bem cuidado, (…). (11)
E nessa contenção mantém-se toda a força, repelente ou atractiva, do indizível.
E eu não sabia por que nome chamar; eu exclamei me doendo:
—”Meu amor!” (12)
(1) in Paraíso inabitado de Ana Maria Matute, ed.Destino
(2) ‘António Botto e o ideal estético creador’ in Apreciações Literárias—Bosquejos e Esquemas Críticos de Fernando Pessoa, ed.Estante
(3) ‘Justificação do Prazer’ in Escritos Filosóficos e Políticos (extraído de Justine ou os infortúnios da Virtude) de Donatien Alphonse F. de Sade, trad.Serafim Ferreira ed.colecção 70
(4) ‘Prefácio’ in O Esqueleto de Camilo Castelo Branco, ed.Livraria de Campos Junior
(5) ‘É-o-que-é’ inA Causa das Coisas de Miguel Esteves Cardoso, ed.Assírio e Alvim
(6) ‘Amadeo de Souza-Cardoso’ in Obras Completas vol.6 Textos de Intervenção De José Almada Negreiros, ed.Estampa
(7) in Loucura… de Mário de Sá-Carneiro, ed.Rolim
(8) in Fedro de Platão, ed.Guimarães & Cª
(9) in ‘Sobre o impossível ofício de escrever’ in Somos el tiempo que nos queda-Descrédito del Héroe de J.M. Caballero Bonald, ed.Austral
(10)in Caperucita en Manhattan de Carmen Martín Gaite, ed.Siruela
(11) in Sem Destino de Imre Kertész, trad.Ernesto Rodrigues ed.Presença
(12) in Grande Sertão: Veredas de João Guimarães Rosa, ed.Nova Fronteira