O lugar do meio
Uma dificuldade curiosa, mais frequente do que se julga, e que, provavelmente, só surpreende quem nunca tentou escrever uma estória de ‘longa duração’, é a do escrevinhador que consegue arrancar com a narrativa sabendo muito bem como a quer concluir, mas sente enormes dificuldades em preencher ‘o meio’.
Ou seja, o escrevinhador tem delineado o tema, o enredo e o propósito, conhece as personagens e o seu contexto, sabe de antemão o remate final da estória…então, o que lhe falta?
Literalmente, falta-lhe algo para preencher o ‘espaço’ entre o início e o fim. Ou assim julga ele. Pode ser que o que já tenha seja a estória praticamente acabada, não fosse a sua ambição de a ampliar em mais algumas dezenas ou centenas de páginas.
Ou pode ser que tenha razão: o enredo não está suficientemente desenvolvido, a intriga perde substância se despachada de modo abreviado…mas não tinha dito que o escrevinhador já tinha estruturado o enredo?
Observa-se melhor este fenómeno quando lemos narrativas divididas em sequelas. Dentro do plano geral, a sequela apresenta a evolução num determinado sentido (que pode estar mais ou menos explícito ou ser absolutamente imprevisível), mas surgem novidades: personagens, ambientes, intrigas, factos. O peso que cada uma das ‘novidades’ tem no plano geral é variável: umas vezes são simples acidentes de percurso, outras vezes são importantes, senão decisivas, para o progresso da narrativa.
As sequelas podem obedecer a um plano mais ou menos rigoroso, que as estrutura dum modo familiar ao leitor, e as ditas novidades tornam-se variações do tema que se arriscam a se tornar ‘mais do mesmo’, ou seja, a serem puro entretenimento já que nada acrescentam à intriga, limitando-se a somar episódios sobre episódios.
Ou as sequelas evoluem, conceptual e estilisticamente inclusive. Quando há evolução, provavelmente deve-se à já referida autonomia das personagens: alteradas as circunstâncias ao longo do tempo, tendo passado pelo que passou, cada personagem reage de modo imprevisto para o próprio escrevinhador.
Deste modo, as novidades que surgem em cada sequela são igualmente imprevisíveis no que implicam para o futuro dos acontecimentos. Até o plano da obra pode ser, senão irremediavelmente alterado, profundamente afectado.
Esta é a magia própria da criação literária e que tanto escrevinhador sente pulsar nas linhas acabadas de escrever: a estória é-lhe oferecida, as personagens determinam o seu destino, o tempo da narrativa é indeterminado, o escrevinhador é o primeiro a ser surpreendido pelo desfecho dos acontecimentos.
Voltando ao problema inicial: quando o enredo está perfeitamente delineado, mas o escrevinhador sente que o tem de alongar com alguns conteúdos extra, talvez seja o modo da sua sensibilidade crítica o alertar para a brevidade, simplicidade, linearidade, do argumento.
Como se a bela musa lhe concedesse uma breve carícia na expectativa de ser seduzida pelo acto criativo do escrevinhador, a centelha de génio que irá libertar a narrativa do que quer que seja que a tolhe.
Sendo assim, a dificuldade tem mais do que uma resposta. Mas se o escrevinhador não a consegue encontrar, torna-se um problema de bloqueio.
E como já tivemos ocasião de ver, há uma dimensão extra-literária no bloqueio criativo que o escrevinhador deve resolver.