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Etiqueta: bloqueio criativo

O lugar do meio

Uma dificuldade curiosa, mais frequente do que se julga, e que, provavelmente, só surpreende quem nunca tentou escrever uma estória de ‘longa duração’, é a do escrevinhador que consegue arrancar com a narrativa sabendo muito bem como a quer concluir, mas sente enormes dificuldades em preencher ‘o meio’.

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Ou seja, o escrevinhador tem delineado o tema, o enredo e o propósito, conhece as personagens e o seu contexto, sabe de antemão o remate final da estória…então, o que lhe falta?

Literalmente, falta-lhe algo para preencher o ‘espaço’ entre o início e o fim. Ou assim julga ele. Pode ser que o que já tenha seja a estória praticamente acabada, não fosse a sua ambição de a ampliar em mais algumas dezenas ou centenas de páginas.

Ou pode ser que tenha razão: o enredo não está suficientemente desenvolvido, a intriga perde substância se despachada de modo abreviado…mas não tinha dito que o escrevinhador já tinha estruturado o enredo?

Observa-se melhor este fenómeno quando lemos narrativas divididas em sequelas. Dentro do plano geral, a sequela apresenta a evolução num determinado sentido (que pode estar mais ou menos explícito ou ser absolutamente imprevisível), mas surgem novidades: personagens, ambientes, intrigas, factos. O peso que cada uma das ‘novidades’ tem no plano geral é variável: umas vezes são simples acidentes de percurso, outras vezes são importantes, senão decisivas, para o progresso da narrativa.

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As sequelas podem obedecer a um plano mais ou menos rigoroso, que as estrutura dum modo familiar ao leitor, e as ditas novidades tornam-se variações do tema que se arriscam a se tornar ‘mais do mesmo’, ou seja, a serem puro entretenimento já que nada acrescentam à intriga, limitando-se a somar episódios sobre episódios.

Ou as sequelas evoluem, conceptual e estilisticamente inclusive. Quando há evolução, provavelmente deve-se à já referida autonomia das personagens: alteradas as circunstâncias ao longo do tempo, tendo passado pelo que passou, cada personagem reage de modo imprevisto para o próprio escrevinhador.

Deste modo, as novidades que surgem em cada sequela são igualmente imprevisíveis no que implicam para o futuro dos acontecimentos. Até o plano da obra pode ser, senão irremediavelmente alterado, profundamente afectado.

Esta é a magia própria da criação literária e que tanto escrevinhador sente pulsar nas linhas acabadas de escrever: a estória é-lhe oferecida, as personagens determinam o seu destino, o tempo da narrativa é indeterminado, o escrevinhador é o primeiro a ser surpreendido pelo desfecho dos acontecimentos.

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Voltando ao problema inicial: quando o enredo está perfeitamente delineado, mas o escrevinhador sente que o tem de alongar com alguns conteúdos extra, talvez seja o modo da sua sensibilidade crítica o alertar para a brevidade, simplicidade, linearidade, do argumento.

Como se a bela musa lhe concedesse uma breve carícia na expectativa de ser seduzida pelo acto criativo do escrevinhador, a centelha de génio que irá libertar a narrativa do que quer que seja que a tolhe.

Sendo assim, a dificuldade tem mais do que uma resposta. Mas se o escrevinhador não a consegue encontrar, torna-se um problema de bloqueio.

E como já tivemos ocasião de ver, há uma dimensão extra-literária no bloqueio criativo que o escrevinhador deve resolver.

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Tecendo o enredo

Entendo que a prioridade do escrevinhador seja desenvolver a ideia de modo extenso e conclusivo, e o que produzir será, com toda a probabilidade, o esboço a partir do qual trabalhará.

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Não deve deixar o censor interno pronunciar-se nesta fase, pois tudo o que escrever não se destina a publicação, nem à leitura por pessoas amigas, eventualmente.

Se se deparar com um impasse e não encontra solução, salte para uma outra linha de desenvolvimento e deixe para trás os problemas (mais tarde irá se concentrar exclusivamente neles).

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Aliás, os detalhes são só para tratar numa fase posterior. O que importa é estruturar de modo a detectar as incongruências, as implicações, as alternativas, pois a fase da formação do enredo torna-se a primeira grande dificuldade do acto da escrita.

Essa dificuldade assenta na transposição para o texto de uma ou de várias ideias, as quais tendem a parecer melhores enquanto não ganham corpo escrito. Quando ganham, tanto podem revelar-se banais, como exigirem muito mais do que o escrevinhador sente ser capaz.

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Duma ou de outra maneira, o escrevinhador arrisca-se a tropeçar nos próprios dedos e cair no abismo do bloqueio criativo.

Por precaução, o escrevinhador deve prosseguir em frente deixando para trás o que terá para resolver depois.

A vantagem é que no desenvolvimento podem surgir respostas e soluções às dúvidas sobre determinada sequência. Caso não surjam, também pode o escrevinhador avaliar a pertinência narrativa desta ou daquela passagem, desta ou daquela situação e assim por diante.

Com o enredo estruturado e desenvolvido, o trabalho formal criativo  começa.

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Escrever para chegar ao fim

Uma coisa boa a respeito da ‘falta de fôlego’ do escrevinhador, tema do post anterior: resulta, na esmagadora maioria dos casos, duma consciência auto-crítica sobre o valor do texto.

Depois de doze minutos/Do seu drama  O Marinheiro/Em que os mais ágeis e astutos/Se sentem com sono e brutos,/E de sentido nem cheiro,/Diz uma das veladoras/Com langorosa magia:/ 

De eterno e belo há apenas o sonho. Porque estamos falando ainda?

/Ora isso mesmo é que eu ia/ Perguntar a essas senhoras…(1)1982260_797510686944822_1081620113_nO escrevinhador percebe que esgotou a capacidade de inovar, acrescentar, renovar, limitando-se a produzir texto a metro, e mesmo assim com muito custo. Obviamente, o resultado não o pode satisfazer.

Parte-se em mim qualquer coisa. O vermelho anoiteceu./Senti de mais para poder continuar a sentir/ Esgotou-se-me a alma, ficou só um eco dentro de mim. (2)

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-Primeiro tens de gostar de ti mesmo. -De mim?!…Eu mereço melhor!

Se parar, guardando o texto numa gaveta e aproveitando para arejar as ideias, talvez seja beneficiado por uma lufada de inspiração mais tarde. Ou abandone o projecto.

Se sou capaz de chegar ao fim ou não, não é contigo, deixa-me ir…/É comigo, com Deus, com o sentido-eu da palavra Infinito…Prá frente! (3)

Infelizmente, muitos assumem o ‘dever’ de lhe dar um fim, arrumando de vez com aquela tarefa penosa. Percebo que o façam por obrigação contratual, mas isso só beneficiará a lista dos monos, caso venham a publicar.

(…) Se há um plano/ Que eu forme, na vida que talho para mim/Antes que eu chegue desse plano ao fim/Já estou como antes fora dele. (…) (4)

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Contudo, a imensa maioria não está sujeita a prazos, muito menos a contratos. Sem gosto, nem proveito, porque insistem?

Vou atirar uma bomba ao destino. (5)

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Sem entrar nas águas turvas da criação artística, creio que a resposta está no nível emocional do exercício da escrita literária: a generalidade dos escrevinhadores escreve por necessidade interior, como se o acto ajudasse a por em ordem as ideias, os sentimentos, a vida. Que não é uma terapia cem por cento eficaz demonstra-o a legião de suicidas, alcoólatras,  e doidos que brilharam (e brilham) no universo literário.

Mas escrever como terapia também não é garantia de que o escrevinhador se torne melhor pessoa, e muito menos de que os seus escritos se elevem da mediocridade.

Hup lá, hup lá, hup-lá-hô, hup-lá!/Hé-lá! Hé-hô! Ho-o-o-o-o!/Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!

Ah não ser eu toda a gente e toda a parte! (6)

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(1) in A Fernando Pessoa depois de ler o seu drama estático “O Marinheiro” em “Orpheu I” ; esta e as citações seguintes são da autoria de Álvaro de Campos  Poesia vol.I ed.Planeta DeAgostini

(2) in Ode Marítima

(3) in Carnaval

(4) in Saudação a Walt Whitman 

(5) Poema nº 42 (sem título)

(6) in Ode Triunfal

A escrita preguiçosa

Não tem como confundir o bloqueio da escrita com a escrita preguiçosa. O bloqueio até será frequente quanto já se escreveu (mais ainda se já publicou) algumas obras, enfrentando o escrevinhador a angústia de ter esgotado o assunto, de voltar a repetir temas, tiques e truques. A boa notícia é que está na hora de partir para outra etapa da viagem, a má é que a bela musa teima em não aparecer.

Sobre o bloqueio já aqui, ali, acoli e acolá (e mais além também!) se falou algo, e tanto pode acontecer ao inexperiente, como ao mais bem sucedido dos escrevinhadores. Mas preguiça é coisa totalmente diferente.

"Ele está a trabalhar uma canção de ninar."

“Ele está a trabalhar uma canção de ninar.”

O escrevinhador preguiçoso é uma espécie muito comum entre os principiantes, por falta de experiência e método, provavelmente. Da experiência se pode dizer como os versos de Machado a propósito do caminho Caminante, no hay camino,/se hace camino al andar. Ora, se a sua tendência for a produção poética, ao fim de um tempo acabará por acumular um acervo razoável de poemas/textos poéticos, onde o crítico poderá confirmar a inconsistência ou a incapacidade de desenvolver o potencial. Falta de método, em qualquer dos casos.

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“Nunca penso enquanto estou a trabalhar. Não sou bom a fazer várias coisas ao mesmo tempo.”

Daí surge a ‘escrita preguiçosa’: plena de estereótipos, cultivando o lugar-comum como referência e tradição, desinspirada, abúlica, mais ainda se servida por uma gramática deficiente ou sofrendo um regime pobre em leituras. Porém, muitas vezes passa por voluntariosa, dedicada, sofrida, e outros atributos que têm mais a ver com as emoções do que com a literatura. image004 E, ao contrário do bloqueio, tende a tornar-se uma patologia crónica, maligna, potencialmente contagiosa.

Inspiração, transpiração…

Por muito importante que seja a inspiração, há sempre um problema pratico e arreliante a resolver: método.

Porque, por falta de método, perdem-se ideias e sugestões inspiradoras. Tradicionalmente, o escrevinhador previdente está munido dum bloco de notas para rabiscar imediatamente o que lhe foi sugerido numa conversa ouvida casualmente ou ao passar por certo lugar sob incerta luz.

"Não te importas que escreva no meu diário?"

“Não te importas que escreva no meu diário?”

E, mesmo assim, pode lhe faltar o reflexo de anotar logo ou a argúcia em tomar nota das palavras-chave. Porque a inspiração tem algo de químico, activando hormonas que hão-de despertar memórias, associar ideias,  suscitar estórias ou encadear imagens, etc, etc, e o processo pode ser reactivado horas, dias, anos depois, pela ordem inversa, através das palavras.

Daí que, quando o escrevinhador se queixa de falta de assunto, de inspiração ou bloqueio, talvez o problema seja mais simples de entender assim.

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O meu psicólogo diz que vai levar anos para trabalhar os meus problemas de fúria, mas não tenho a certeza. Basta escrever uma estória de violência assassina e sinto-me bastante bem.

Quando ouço em resposta ah, isso dá muito trabalho! ou não se pode estar todo o tempo a tomar notas do que acontece fico com a impressão de que estou a gastar o meu latim com simples curiosos.

Gosto de falar na musa, de exaltar a paixão, de insistir no grãozinho de loucura e todas essas imagens ou ideias que transmitem a possessão no acto da escrita. Faço-o porque sei que, se até o mero leitor, também ele, quando se defronta com um certo poema ou estória, é capaz de sentir o sopro da inspiração, como não há-de senti-la o escrevinhador nas suas horas felizes obsessivas dando forma ao que lhe vai por dentro?

"O Inverno deve estar a chegar. As pessoas da minha novela estão a usar luvas."

“O Inverno deve estar a chegar. As pessoas da minha novela começaram a usar luvas.”

Porém, mesmo o mais sagrado dos mistérios exige ritos banais a seguir com algum escrúpulo e disciplina.

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“Helena,eu apreciaria muito se respeitasses o meu processo criativo.”

Le mal de vivre

Os escrevinhadores, consagrados ou anónimos, são como os outros seres humanos, apesar de tudo: precisam de motivação, treino diário, avaliação por objectivos e por desempenho, terapia, amor, carinho. E comida quente uma vez por dia, pelo menos.

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Nos posts de Agosto e de Setembro falei sobre o bloqueio da criatividade e tentei dar algumas dicas para ultrapassar fase tão nefasta. Mas o que procuro reflectir agora é o bloqueio do autor que, tendo tudo bem delineado para arrancar o processo da escrita, não consegue fazê-lo.

'El indiferente' (2006) de Gilbert Garcin

De certo modo, é como aquela estória do rapaz/rapariga que tem saúde, beleza e dinheiro, a vida toda pela frente, mas sente-se infeliz, sem interesse por nada (nem ninguém) …e, nós, os menos afortunados, a pensarmos ‘ah, se eu estivesse no teu lugar, o que não faria!…’

Contam as biografias de alguns autores famosos que estes beneficiaram da ajuda inestimável das suas companheiras para conseguirem escrever boa parte da sua obra. Na verdade, sugerem os biógrafos que essas mulheres teriam escrito, de facto, os livros que eles depois assinaram e assumiram a paternidade.

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Polémicas à parte, o que isto exprime é o absurdo de ter um projecto perfeitamente delineado ao pormenor mas não ter ânimo para o concretizar; ânimo que outra pessoa, aparentemente menos dotada, pode ter de sobra.

Como já foi dito no post anterior, este não é um problema criativo, nem especificamente literário. Mas é frequente nestes meios, e não menos improdutivo quanto o bloqueio criativo.

-A minha terapia é muito simples: eu abano a cauda e lambo-lhe a cara até que se sinta bem consigo mesmo outra vez.

“A minha terapia é muito simples: eu abano a cauda e lambo-lhe a cara até que se sinta bem consigo mesmo outra vez.”

Se o escrevinhador deste blog tivesse vocação para guru, líder espiritual ou para lançar campanhas de marketing, daria já de seguida os 10 passos para solucionar esta maleita. Mas não tem.

Entre outros defeitos, além dos de se repetir com frequência e falar de si na terceira pessoa, ele especializou-se em levantar problemas e problematizá-los um pouco mais.

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Criatividade e bloqueio

Com mais frequência do que o reconhecido, o escrevinhador que se inicie nos trabalhos de parto ou aquele outro que já tenha colocado no mundo um qualquer livro, vêem-se perante o paradoxo de ter uma ideia clara, estruturada por um plano com início, meio e fim, em que personagens surgem com nome e identidade própria, o desfecho apresenta-se com nitidez e propósito, e…nada! No entanto, a parte criativa funciona.

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A origem da expressão ‘bloqueio do escritor’…

Quem seja chamado a apreciar a ideia, estrutura, etc, até pode concordar que está tudo em boa forma e é promissor; então, o que falta para arrancar o processo?

Seja qual for a resposta, não tem nada a ver com a escrita em si. Apesar de ser uma patologia comum no processo de criação literária.

Então, escrever como?

A escrita encalhada

Um horizonte (aparentemente) inalcançável para quem se inicia nas artes da escrita de longa duração é aquele em que as diversas ideias, tópicos e/ou narrativas se relacionam natural e fluentemente, ao longo da elaboração do livro.

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Para os menos afortunados, quem dera a eles ser esse o problema! Na mochila de viajante não trazem, ou entendem não trazer, matéria suficiente para encher cem páginas, reduzindo-se tudo a breves linhas duma esplêndida ideia.

Eu escreveria, se tivesse tempo.

Eu escreveria, se tivesse tempo.

Segundo as lendas e narrativas habituais do género, todo o grande escritor, famoso já ou em vias de se tornar grande, passa pelas mesmas angústias e crises de criatividade. Não é propósito, nem pretensão do escrevinhador deste blog apresentar a cura para tão insidiosa doença, pois o diagnóstico é simples e sem outro remédio do que seguir vivendo, ou seja, escrevendo.

Já aqui falei da necessária bagagem literária, também referi a simbologia da viagem e abordei a via oral, mais recentemente assumi a importância dum ambiente social e polémico.

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Tentarei, durante a semana que vem, indicar uma fuga possível ao bloqueio do escrevinhador principiante.

 

O escrevinhador no seu labirinto

Tal como no mito de Ariana existem versões muitos distintas, o escrevinhador pode passar por processos muito contrastados: umas vezes produz torrencialmente, sem qualquer dificuldade, para depois entender de que nada daquilo o satisfaz; como pode escrever de modo doloroso, hesitante, diminuto, porém produtivo e satisfatório, permitindo-lhe progredir; ou anda à roda duma ideia, incapaz de lhe dar o sentido, a dinâmica, mas certo de lhe ter apanhado o estilo, a expressão.

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MANTENHA A CALMA e
ESCREVA ALGO

Na versão mais conhecida do mito, Ariana perde o homem que ama e salvou a vida, porque este desiste dela frente à pretensão dum candidato com mais poder e prestígio. Assim, do escrito pode resultar coisa muito diferente do que estava previsto, resultando um outro desenvolvimento, uma dinâmica segura, uma voz própria.

-Uau! 932 páginas de documentação. Impressionante. Como conseguiste lidar com tanta documentação? -Bem, precisas de certas competências, alguma paciência, alguma paixão e... -E muito crtl-c crtl-v? -Correcto!

-Uau! 932 páginas de documentação. Impressionante. Como conseguiste lidar com tanta documentação?
-Bem, precisas de certas competências, alguma paciência, alguma paixão e…
-E muito crtl-c crtl-v?
-Correcto!

A escrita é metamórfica, instável, vulnerável. Mas quando movida por um interesse genuíno, visceral, é persistente como qualquer doença reincidente.

O fio de Ariana

Deixar fluir livremente o texto sem pudor, eis a grande vitória do escrevinhador. Mais tarde, do que produzir terá a sorte de peneirar alguma pepita de ouro…ou uma pedra de vidro colorida, ao menos .

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Depois, jogar à “apanhadinha” com a intuição e o intuito. Se algo o move, algo também lhe toca: entre o intelecto e a emoção, o fio duma ideia pode surgir, conduzindo-o pelo labirinto até ao exterior.

Produzir texto, escrever sem valorizar a forma, procurando a expressão de ideias, sensibilidades, sonoridades.

Que a quase totalidade dessa produção seja para deitar fora não afecte o esforço de reciclar textos, ideias, dando-lhes outros contextos, formulando variações, editando como quem monta puzzles.

Editor (com o original de Moby Dick nas mãos): "Está bom, mas vamos trocar o canguru por uma baleia."

Editor (com o original de Moby Dick nas mãos): “Está bom, mas vamos trocar o canguru por uma baleia.”

Pessoalmente, confesso que é a parte que me dá mais gozo. Principalmente a partir do meio duma tarde de Outono ou de Inverno, entrando pela noite adentro.

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“A musa que a maioria de nós realmente precisa”

 

Bloqueio criativo

Por mais voltas que demos, voltamos sempre ao básico: escrever como?

A folha branca diante dos olhos (permitam-me a imagem clássica, apesar de tudo verosímil por causa da página do word) continua desesperadamente imaculada e o autor, uma criatura ainda virtual, atormentado com a evidência da sua incapacidade.

galinha:-Maldita sejas, página branca! Tu fazes pouco de mim com a tua brancura! pagina branca:-Volta! Eu acredito em ti! lapiseira:-Vai e não voltes! Que parvalhão! O bloqueio do autor, normalmente atribuído a uma pagina em branco, tem origem em lapiseiras perversas.

galinha:-Maldita sejas, página branca! Tu fazes pouco de mim com a tua brancura!
pagina branca:-Volta! Eu acredito em ti!
lapiseira:-Vai e não voltes! Que parvalhão!
O bloqueio do autor, normalmente atribuído a uma pagina em branco, tem origem em lapiseiras perversas.

No tempo das folhas de papel, um caixote de lixo atafulhado de escritos amarrotados faria prova do contrário: em desespero, o escrevinhador alisaria o amarrotado na tentativa de extrair algum metal precioso daquela escória toda. Talvez fosse, subitamente, bafejado pelo dom de reordenar, editar e recriar muito do que antes fora desprezado.

Um (re)começo constante até à fórmula final. Ou quase final.

Com a tecla ‘delete’ tentadora, por um lado, ou a insidiosa questão final antes do fecho do documento ‘deseja guardar as alterações?’, o escrevinhador de teclado de computador arrisca deitar fora duma vez, e de vez, todo o trabalho de horas, dias, talvez semanas e meses. Assim, a maldição de Sísifo condena o seu esforço, sem glória, nem emenda.

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Estimulantes literários

Ainda não há vitamínicos específicos para o processo criativo, embora seja longa a lista dos “consumíveis” para obter o mesmo efeito, na tradição literária de todos os tempos e lugares.

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A escrita pode ser uma tarefa ou um passatempo, tanto funciona como um escape como pode ser uma pulsão. Ao contrário do que possa parecer, o facto de ser uma actividade solitária não favorece a criatividade, já que esta exige abertura e confronto. Mas o recolhimento, ou introspecção, pode funcionar como uma etapa fundamental para o arranque e desenvolvimento da obra.

Daí que aqueles mais cientes do modo como “funcionam” dêem relevância a certos rituais, preparem o espaço aonde vão trabalhar a ideia e passa-la a escrito. Sobre isso que se pode dizer? Cada qual arranja o espaço como lhe convém, acomoda o tempo como pode, e enfrenta, sempre, distracções que prejudicam a “criação”. Não se trata dum problema exclusivo do universo literário, como é fácil de entender, e varia imenso de indivíduo para indivíduo.

"Para de olhar para mim"

“Para de olhar para mim!!!”

O bloqueio criativo, o pavor da folha em branco, e outras expressões apelativas, muitas vezes escondem verdades mais simples: falta de trabalho, de preparação, de investigação, em todos os níveis da construção literária. Como se a preguiça mental confiasse em demasia no processo criativo espontâneo. Umas vezes, até pode acontecer. Mas não dá para esperar pelo beijo da Musa toda a vez que alguém tenha vontade de escrever. Para isso, a exposição pública de ideias, o confronto de opiniões, a crítica desapiedada, podem ser um estímulo poderoso.

Houve tempos mais favoráveis, e em certos espaços, mesmo assim, para o debate de ideias e produção escrita. Se nas vilas do interior dum pequeno país quase analfabeto, sempre havia um café central onde as pessoas mais ilustradas podiam debater, um jornal que dedicava algum espaço às letras, algum prestígio podia dourar a reduzida edição de algum título poético ou polémico. Dentro dos limites do permissível, bem entendido.

Tempos e lugares para grandes polémicas, literárias ou não. Mas não hajam ilusões sobre um passado abençoado para a produção escrita: basta ler os clássicos como Camilo ou Eça, para nos sentirmos confortáveis na nossa época.

O sentimento doloroso de que não seria imortalizado pelos seus textos brilhantes, mas por alguma coisa banal como a sua pegada ou dente.

O sentimento doloroso de que não seria imortalizado pelos seus textos brilhantes, mas por alguma coisa banal como a sua pegada ou dente.

 

Foco

Ao pensar num livro a escrever, talvez o mais razoável seja centrar-se no tema, no enredo ou no propósito.

Que diferenças existem entre si? Nos próximos posts falarei o que penso a este respeito.

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Mentiras de Um de Abril

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

(…)

(Autopsicografia, Fernando Pessoa)

Muitas vezes desvaloriza-se um relato porque é “ficção”. A ficção como sendo inferior à realidade. A realidade entendida como o factual, o verdadeiro. Enquanto a ficção é do domínio da fantasia, da imaginação. Uma mentira, portanto.

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Por vezes, o autor bloqueia quando sente que não tem conhecimento suficiente para abordar certos temas. Ou, pelo contrário, porque tem e porque irá expor o que muitos amigos ou familiares não lhe perdoarão ter exposto. Se pretende escrever um texto com pretensões históricas (como o testemunho de quem viveu e participou nos factos narrados), esses são problemas sérios. Leia o resto deste artigo »

E não escreve porquê?

Quem segue este blog talvez saiba porque escreve (ou porque quer escrever).

E se não sabe, não interessa: escreve (ou quer escrever) na mesma. Porque escrever pode ser uma exigência pessoal incontrolável, seja um livro técnico sobre disjuntores e fusíveis, seja uma narrativa sobre alegrias e tristezas dum qualquer cidadão.  Ainda que o esforço seja inconsequente e decepcionante.

Analisar motivações pode dar um excelente tema para livro, mas não resolve os problemas da escrita.

Quais são os problemas mais frequentes?

Falta de assunto, dificuldade de estruturar o material (ideias, memórias, factos), bloqueio criativo, não ter ambiente/tempo para se dedicar à escrita, necessidade de aprofundar mais o(s) temas(s), insegurança, consciência aguda da total falta de estilo-jeito-gosto para escrever?

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Escrever como?

Escrever um livro, como?

Muita gente desanima frente à folha em branco, ou depois de ver as garatujas (ver nota 1) deixadas ao longo de tortuosas horas de sofrimento, às vezes iludidas pelo entusiasmo momentâneo.

Mesmo aqueles familiarizados com a boa leitura e, até, tendo “jeito” para a escrita, fracassam clamorosamente no empreendimento de levantar obra.

Porquê? Francamente, não tenho resposta, pois por cada um que falha há dez mil a publicar coisas sem qualquer interesse ou valor. (ver nota 2)

Ou seja, há muita boa gente a escrever. Se calhar mal.

Então, escrever como?

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