Ainda há quem consiga ler um livro genial?

by escrever como?

As dificuldades da leitura do Grande Sertão: Veredas são o paradoxo da própria expressão artística: a originalidade da escrita “exige” entrega do leitor, sua dedicação (tempo e qualidade de leitura), para se “deixar levar” na corrente do discurso do narrador e do seu peculiar modo de se exprimir.

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Em forma de monólogo (como n’ O Malhadinhas), o personagem central da história conta a sua vida, dirigindo-se a alguém a quem chama “doutor”, de outra condição social e estranho ao mundo do Sertão, muitos anos depois dos acontecimentos narrados.

Mas a narrativa de Riobaldo não é linear, frequentemente interrompida por reflexões a que se sucedem relatos episódicos da vida. O recurso dos neologismos, das onomatopeias, de palavras do português antigo, do imaginário sertanejo (fortemente devedor do imaginário europeu medieval), de frases construídas ao arrepio da boa lógica ou gramática, ultrapassam os limites da expressividade a que qualquer linguagem restringe as emoções, permitindo assim ao leitor penetrar no sentido profundo da narração.

Um dos aspectos mais interessantes do Grande Sertão: Veredas está, precisamente, em ser uma obra a todos os títulos original, tributária duma longa tradição literária, a começar pelos romances medievais, reflectindo a origem e a evolução da Língua Portuguesa no modo como constrói frases e vocábulos.

A história vai ganhando ritmo, desenvolvendo um eixo (a vida de jagunço e, desta, a vingança contra o inimigo Hermógenes) onde giram, com igual significado para o narrador e para a narração, temas recorrentes que atormentam Riobaldo: o amor por Otacília (que virá a ser sua mulher), o amor secreto por Diadorim (seu amigo cangaceiro), o Demo (que teima em  se convencer que não existe) e o pacto que celebraram ambos (mas que não sabe ao certo se aconteceu) em determinado lugar (que veio a saber depois que não existe).

Acima de tudo, porque tudo o mais ganha novo sentido com a revelação, o segredo imenso que Diadorim trazia consigo e que Riobaldo só vem a descobrir tarde de mais. Aqui, a narrativa assume uma dimensão trágica, ainda para mais associada ao tema faustiano da venda da alma ao Diabo.

Sua originalidade assenta, entre outros aspectos, no modo aparentemente caótico da narrativa (o narrador facilmente perde o fio à meada e frequentemente se afunda nas suas angústias) associado à peculiar linguagem e expressividade do narrador (poética, ritmada, hesitante, pontuada de interrogações), onde nem o próprio, por vezes, tem a certeza de dizer a verdade do que viu.

Infelizmente, toda esta riqueza torna a leitura problemática, de difícil acesso ao leitor, principalmente quando não está habituado a ter de “lidar” com estruturas fora do comum e ter de ser ele próprio a retirar o sentido duma frase que, à letra, nada ou pouco diz. Ou a ter de completar entreditos, perceber alusões.

Bem diversa da narrativa literária onde a ausência da ambiguidade, o contraste marcado (entre o certo e o errado, o verdadeiro e o falso, o bem e o mal, etc), a utilização do vocabulário corrente, uma construção com principio, meio e fim, personagens tipificados desde o início, a opção por um tema que, por mais exótico que seja aparentemente, se reduz às mesmas problemáticas do dia-a-dia do leitor, tornam a leitura fácil e a “mensagem” compreensível.

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