escrever como?

tópicos e dicas para escrita

Etiqueta: desenvolvimento do enredo

Rir seriamente

Quando Cervantes escreveu a primeira parte do Don Quixote, terá surpreendido favoravelmente os leitores contemporâneos com aquilo que parecia ser uma sátira aos romances de cavalaria.

(…) a história do famoso dom Quixote de la Mancha, de que todos os moradores do distrito do campo de Montiel têm a opinião de ser o mais casto enamorado e o mais valente cavalheiro que, de muitos anos a esta parte, se viu por aquelas bandas. Não pretendo encarecer-te o serviço que te faço em dar-te a conhecer tão nobre e tão honrado cavaleiro; mas quero que me agradeças o conhecimento que terás do famoso Sancho Pança, seu escudeiro, (…). [do Prólogo d’O Engenhoso Fidalgo don Quixote de la Mancha]

quixote

Para os leitores dos sec.XX e XXI, a segunda parte do mesmo livro (publicada uma década depois da primeira) surpreende mais pelo diálogo de Quixote e Sancho com leitores da primeira parte, discutindo o modo como são relatadas as suas aventuras.

—Desse modo, é verdade que há uma história minha e que foi mouro e sábio quem a compôs?

—É tão verdade, senhor—disse Sansão—, que tenho para mim que no dia de hoje estão impressos mais de doze mil da tal história; senão, diga-o Portugal, Barcelona e Valência, onde se imprimiram; (…).

don-quixote

As duas partes reunidas sob um só título constituem, por isso e pelo mais que o tempo e a crítica vão desvelando, um dos maiores monumentos literários. Não sendo propósito deste blog fazer crítica literária, a referência ao Don Quixote interessa como exemplo de uma obra que se desenvolve para além das pretensões iniciais do escrevinhador.

(…) e o que mais demonstrou desejá-la [a segunda parte do Don Quixotefoi o grande imperador da China, pois em língua chinesa haverá um mês que me escreveu uma carta(…) suplicando-me que a enviasse porque queria fundar um colégio onde se lesse a língua castelhana e queria que o livro que se lesse fosse o da história de dom Quixote. Juntamente com isso dizia que seria eu o reitor de tal colégio. [da Dedicatória ao Conde de Lemos in Segunda Parte do Engenhoso Cavaleiro dom Quixote de La Mancha]

quixote manga

 

Esse ‘desenvolvimento’ é evidente pela aparição da segunda parte (que a primeira não pressupunha), e que decorre da popularidade que narrativa e personagens tiveram logo a seguir à sua publicação. No mínimo, o êxito confirma como é gratificante e potencialmente inspirador o diálogo entre o escrevinhador e os seus leitores.

Diz-me, irmão escudeiro: esse vosso senhor não é um de quem anda impressa uma história que se chama do Engenhoso Fidalgo dom Quixote de la Mancha, que tem por senhora da sua alma a uma tal Dulcineia de Toboso?

O mesmo, senhora—respondeu Sancho—; e aquele escudeiro seu que anda, ou deve de andar, na tal história, a quem chamam Sancho Pança, sou eu, se é que não me trocaram do berço; quero dizer, que me trocaram na estampa.

panel-borders-don-quixote-header

“-Então é verdade que sou tido como uma personagem cómica, agora?”(cartoon de Rob Davies)

 

Por outro lado, talvez a ideia inicial fosse satirizar, mas as personagens de Quixote e de Sancho desenvolveram-se com tal complexidade que se tornaram mais do que simples estereótipos do alienado (Quixote) e do bronco (Sancho), ganhando dimensão, profundidade, ou seja, humanizando-se. Nesse sentido, mais do que uma vez o leitor tende a identificar-se com elas, a percebê-las, a ver pelo seu ponto de vista.

—Isso de os governar bem—respondeu Sancho—não tem que mo recomendar, pois sou caridoso por feitio e tenho compaixão pelos pobres; e a quem coze e amassa, não lhe furtes fogaça; e para minha benção que não me hão-de lançar falsidades; sou cão velho e entendo todos tus, tus, e sei espevitar-me quando é preciso, e não consinto que me deitem areia nos olhos, porque sei onde me aperta o sapato: digo-o porque os bons terão comigo mão e concavidade, e os maus, nem pé, nem entrada.

sancho e quixote

Sem prejuízo do riso que, volta e meia, suscitam pelas suas palavras e actos; mas o riso estende-se às outras personagens, as ditas ‘normais’, as que partilham com o leitor a mesma estranheza e hilaridade frente àquele extraordinário duo.

E como não mentem—disse nesta altura dona Rodrigues, a dona, que era uma das ouvintes:—que meteram ao rei Rodrigo, vivo vivo, numa tumba cheia de sapos, cobras e lagartos, e que daí a dois dias disse o rei de dentro da tumba, com voz baixa e dorida: Já me comem, já me comem/ por onde mais pecado havia; e por isto, muita razão tem este senhor [Sancho Pança] em dizer que quer mais ser lavrador do que rei, se lhe vão a comer os bicharocos.

quijote

Porém, esse outro riso poderá ter um travo amargo, levar a uma reflexão inesperada, fazer simpatizar com o alvo habitual da troça. O que não é outra coisa senão actuar ao nível dos nossos preconceitos.

(…) Daqui aproveitou a ocasião o duque em fazer-lhe aquela partida: tanto era o que gostava das coisas de Sancho e de dom Quixote; (…). E disse mais Cid Hamete [o ‘verdadeiro’ autor de dom Quixote e de quem Cervantes se diz mero tradutor]: que tem para si serem tão loucos os burlões como os burlados, e não estavam os duques dois dedos de parecerem tontos, pois tanto afinco punham em enganar dois tontos.

'What happened to your windmill?'

cartaz: Seguradora La Mancha                                          ‘O que é que aconteceu ao seu moinho de vento?’

A força centrípeta da narrativa

Já por aqui tem sido dito (e exemplificado): o enredo pode ser linear ou muito pelo contrário.

1401292086_792073_1401292140_noticia_normal

A sequência linear é a mais vulgar, a lógica e natural. Em si, nada tem de banal, de estereotipado, de previsível. Também nada tem de óbvio ou de necessário. Assim como não é intuitiva, directa, nem isenta de artificialismo.

Porém, é a sequência linear aquela que começa e acaba seguindo a seta do Tempo, respeitando a ordem dos acontecimentos e progredindo de acordo com a queda das folhas do calendário. Como a vida de todos nós, certo?

1231412_631038476927802_1299036690_n

Certo, mas nada de menos verdadeiro: o tempo dos acontecimentos nem sempre coincide com o da memória. E ambos divergem, frequentemente, com o dos afectos. E quando a escrita reacende paixões violentas, remexe nos traumas obscuros, ou destapa recalcamentos, o escrevinhador é tentado a romper com as convenções e a lógica da sequência linear.

images (10)

O enredo pode começar pelo fim (ou pelo meio), desenvolvendo só o suficiente para ‘agarrar’ o leitor e deixá-lo suspenso nas causas, nos motivos, nos intervenientes.

De modo geral, rapidamente o escrevinhador recua no tempo e segue a sequência linear dos acontecimentos até chegar ao momento da abertura. Que pode justificar nova leitura, à luz dos ‘factos’ agora conhecidos, como pode ser ultrapassada e desenvolvida, revelando-se um ‘falso’ final, tal como já fora uma ‘falsa’ partida.

-E de todo o sonho és a única coisa que me resta.

-…E de todo o sonho és a única coisa concreta que me resta.

Obviamente, o escrevinhador quer intrigar o leitor, fazê-lo precipitar-se em conclusões que, posteriormente, irá descartar.

O efeito é centrípeto: os factos e as personagens que rodam ao longo do enredo convergem para um ponto distante (no fim do livro) e o ritmo da narrativa poderá reforçar a vertigem dessa atracção compulsiva, como muito leitor sabe à custa de noites em que o tempo reservado ao sono é sacrificado para satisfazer a ânsia de saber mais.

magritte-the subjugated reader

magritte-the subjugated reader

Quando o escrevinhador consegue perturbar os hábitos do leitor, causar-lhe olheiras e fadiga matinal, a aposta está ganha.

 

 

A janela aberta

Construído o enredo, ao escrevinhador colocam-se questões básicas: necessita de fazer trabalho de investigação, estudos, entrevistas com pessoas reais, deslocar-se a lugares, experimentar por si mesmo outras vivências?

14143835

Ao contrário do académico, do jornalista ou de outros escrevinhadores que assumem a ligação com a realidade como base dos seus trabalhos, o escrevinhador de ficções não precisa de sair da cama para começar e acabar o que quer que seja.

Mas todo o trabalho prévio, nem que seja o da simples leitura, pode consolidar a verosimilhança do enredo (factos, personagens, modos de falar e de estar, etc), como pode reforçar a inspiração e o alento do processo criativo.

-Estou com grandes esperanças para o meu próximo álibi: estou frequentando um curso de escrita literária.

-Estou com grandes esperanças para o meu próximo álibi: estou frequentando um curso de escrita criativa.

Além disso, trata-se duma abertura para o mundo: o escrevinhador viaja, conhece novas terras, nova gente, ouve histórias e regista expressões, toma nota de ideias e sugestões, podendo fazer tudo isto e ir escrevendo, ao mesmo tempo, o que tem estruturado no enredo.

Edward Hopper: Rooms by the sea 1951

Edward Hopper: Rooms by the sea 1951

Hoje em dia, mais do que em qualquer outra época, é possível realizar este trabalho sem sair de casa.

Saindo ou não, pode ser motivo de grande prazer e modo de atenuar vícios duma escrita autocentrada, duma experiência de vida necessariamente limitada pelo preconceito, dos erros assimilados e inconscientes…enfim, as consequências de atribuirmos demasiada relevância ao nosso umbigo ou às nossas dores.

E, como resultado final, pode ser a diferença que o leitor encontra numa estória e nas personagens que ‘respiram’ autenticidade e outra estória e suas personagens em que tudo lhe parece postiço, sem densidade ou paixão.

20110626su-chinese-propaganda-poster-barack-obama

Se depois o leitor vier a saber que o escrevinhador nunca esteve naqueles lugares (e que, talvez por isso mesmo, não corresponde o escrito com a realidade), ou que se inspirou em pessoas que nunca conheceu (e episódios de suas vidas) para construir as personagens, para em seguida distorcer uns e outros, talvez o leitor fique triste e desiludido por tudo aquilo que o fascinou não existir, nem ter existido nunca…mas o fascínio pela estória perdurará, e não é essa a nossa grande vaidade e ambição, ó escrevinhadores?

14076184

Endurance e fitness para o exercício literário

O escrevinhador deve ter o enredo à frente dos olhos quando sarrabisca ou digita obra de maior fôlego. O conto ou o poema tem outras exigências, mas o romance, ou novela, é como uma maratona: mesmo conhecendo o percurso, há que dosear o esforço com inteligência e preparar-se para surpresas.

‘O author trabalha desde antes de hontem no encadeamento lógico e ideologico dos dezesete tomos de reconstrucção, e já tem promptos dez volumes para a publicidade.’

202994

O enredo estruturado numa só folha de papel, capítulo a capítulo, ou por partes, não é um esquema rígido, mas mantém o rumo e assinala desvios.

Só de olhar para o esquema, o escrevinhador antecipa opções imprevistas duma personagem, a necessidade de surgir ‘alguém’ ou ‘algo’ para que se dê certo impulso (ou se dê certa volta) ao ritmo, ao rumo, à retórica.

‘Os capítulos inclusos n’este volume são preludios, uma symphonia offenbachiana, a gaita e o berimbau, da abertura de uma grande charivari de trompões fortes bramindo pelas suas guelas concavas, metálicas.’

10153185_761732250525790_3699931867661917328_n

Relativamente a esta última, o escrevinhador pode sentir-se confuso a seu próprio respeito: umas vezes só lhe saem diálogos, outras vezes longas narrativas, vezes em que os textos são curtos, incisivos, outros nem disfarçam o prazer de divagar…

Que isso não seja motivo de preocupação: posteriormente fará opções, ajustes, correções.

Mas é necessario a quem reedifica a sociedade saber primeiro se ella quer ser desabada a pontapés de estylo para depois ser reedificada com adjectivos pomposos e adverbios rutilantes.’

images (5)

AVISO: A vida não é justa

Importante é perceber se o desenvolvimento do enredo progride, se o que ‘está para a frente’ é uma força centrípeta ou se é miragem. Durante a semana que vem tentarei explicar-me melhor a este respeito.

‘É o que se faz nas folhas preliminares d’esta obra violenta, de combate, destinada a entrar pelos corações dentro e a sahir pelas merciarias fora.’

 

nota: todas as citações em itálico foram retiradas da ‘Advertência’ de Camilo Castelo Branco, na 1ª edição de Eusébio Macário (1879), ed.Livraria Chardron.